”Tiraram, pois, a pedra de onde o defunto jazia. E Jesus, levantando os olhos para cima, disse: Pai, graças te dou, por me haveres ouvido. Eu bem sei que sempre me ouves, mas eu disse isto por causa da multidão que está em redor, para que creiam que tu me enviaste. E, tendo dito isto, clamou com grande voz: Lázaro, sai para fora. E o defunto saiu, tendo as mãos e os pés ligados com faixas, e o seu rosto envolto num lenço. Disse-lhes Jesus: Desligai-o, e deixai-o ir.”
João 11: 41-44
O trecho transcrito faz parte das escrituras bíblicas e se refere ao personagem Lázaro, reconhecido como aquele que foi ressuscitado após quatro dias de sua morte. A referência não poderia deixar de ser apropriada. O caso Lázaro (“o Barbosa”) ocorrido entre 9 e 28 de junho de 2021 no Distrito Federal e Goiás reapareceu nas manchetes de diversos veículos de comunicação. Sim, voltaremos a nos deparar com novos desdobramentos do caso policial que mais tempo ocupou as manchetes policiais no ano passado, sendo descrito, dentre outras formas, como “A maior caçada a um criminoso já empreendida no país”.
No último dia 24 de setembro, as manchetes destacavam que o inquérito policial militar, concluído pela Corregedoria da Polícia Militar de Goiás, passaria a ser analisado pelo Ministério Público de Goiás, e mais, que o pedido de arquivamento por parte do órgão corregedor não procedia, simplesmente pelo fato de tratar-se de modalidade de crime doloso contra a vida, e não um crime militar, como defende a PMGO. Os promotores terão agora que decidir se oferecem ou não denúncia contra os cinco policiais militares apontados como diretamente envolvidos na ação que culminou com a morte de Lázaro Barbosa em 28 de junho de 2021. Na corregedoria a apuração durou mais de um ano e somente agora, no início de setembro, chegou ao MP para ser objeto de análise.
Na prática o que está verdadeiramente em jogo é a análise se a ação empreendida pelos cinco policiais pode ser considerada “legítima defesa” ou não. Assim como ocorre na maior parte das mortes que envolvem ação policial, muitos casos que antes eram definidos como “autos de resistência”, a dita legítima defesa torna-se o excludente que livra o profissional da área de segurança pública de responder criminalmente nos casos de morte decorrentes de ações policiais. Não há como ter certeza como esse caso será conduzido, mas a considerar-se as estatísticas brasileiras, a chance de que não haja uma condenação de policiais é quase certa.
Um exemplo dessas estatísticas pode ser percebido no estado de São Paulo: entre 2011 e 2019, 6.125 pessoas perderam a vida nas mãos de policiais militares no estado, segundo as estatísticas trimestrais da Secretaria de Segurança Pública, mas apenas 653 PMs foram condenados. A comparação indica que, para cada 10 mortes executadas oficialmente pela polícia, um PM é preso pelo crime.
Não custa relembrar que desde a data de 24 de julho de 2021 a Polícia Civil do estado de Goiás impôs um sigilo de cinco anos aos dados da operação que resultou na morte de Lázaro Barbosa. Portanto, nenhuma das peças técnicas que podem compor o inquérito foi divulgada, seguindo protegida(s) pelo sigilo.
As matérias sobre essa movimentação do processo trazem ainda a informação de que, de acordo com Edson Melo, Tenente Coronel da PMGO que comandou a operação em que Lázaro foi morto e um dos cinco policiais envolvidos, teriam sido efetuados 125 disparos por parte da polícia, dos quais mais de 60 acertaram o fugitivo.
Ao relembrarmos o que escrevemos nessa mesma coluna em 07 de julho de 2021:
“Pairam ainda inúmeras dúvidas em relação ao próprio desfecho da morte de Lázaro ocorrida em confronto. Ele estava mesmo vivo ao ser socorrido? Os 125 disparos de arma de fogo realizados nesse confronto (segundo informações de um dos comandantes da operação, veiculadas na mídia) foram todos feitos em ações de legítima defesa? Os cerca de 40 disparos que atingiram o foragido foram todos no mesmo instante, como ocorre num fuzilamento? E por fim: foi realizada uma perícia para exame de local? (mesmo sem um corpo, os vestígios ali presentes nos obrigam, pelo Código de Processo Penal, à realização de uma perícia, vide artigo 158 do CPP.”
O Tenente Coronel, por sinal, é autor de um livro no qual narra a história da força-tarefa criada para capturar Lázaro Barbosa, contada por nove policiais responsáveis pela captura. Em uma das frases de efeito ele afirma: “O fim de Lázaro começou quando Deus me entregou ele em sonho”.
Resta sabermos se a postura do Ministério Público em não concordar com o arquivamento proposto pela Corregedoria da PMGO pode representar uma mudança na tendência daquele que é considerado o órgão responsável pelo controle externo da atividade policial, já que, na maioria das vezes, a polícia acaba por estar quase sempre certa.
Nota: após a conclusão desta coluna, tivemos a notícia de que a Polícia Federal indiciou os policiais rodoviários federais envolvidos na morte de Genivaldo Santos em Umbaúba (SE), em maio deste ano. Eles responderão por abuso de autoridade e homicídio qualificado (asfixia e homicídio qualificado). Neste caso será o Ministério Público Federal (MPF) quem deverá se manifestar, apresentando ou não a denúncia à Justiça.
CÁSSIO THYONE ALMEIDA DE ROSA - Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.