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A perícia oficial durante o período da ditadura

Trabalho da Comissão Nacional da Verdade comprovou que IMLs e outros órgãos periciais foram coniventes com o regime em casos de tortura e na produção de laudos fraudulentos

29/03/2021 às 07h30
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.org.br/
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A perícia oficial durante o período da ditadura

Nos últimos dias, um dos assuntos que mais ganhou holofotes na mídia foi a pressão que o Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu para que agilize seu posicionamento quanto a aplicação da conhecida Lei de Segurança Nacional (LSN) que, segundo palavras do próprio ministro Ricardo Lewandowski, pode ser encarada como um “fóssil normativo”, em referência ao seu surgimento no ano de 1983, portanto anterior à atual Constituição, que data de 1988. A lei nasceu exatamente no final do período conhecido como Ditadura Militar (1964-1985) e tem sido aplicada em inúmeras situações, algumas das quais questionadas por partidos e entidades, que entendem que ela tem sido empregada muitas vezes no sentido de produzir um cerceamento da liberdade de expressão.

Diante dessa situação, que traz de volta a lembrança do período ditatorial, há uma questão delicada e difícil de ser tratada, mas necessária para a preservação de nossa história: o papel da perícia oficial durante a ditadura militar.

Para a maioria dos Peritos Oficiais em atividade (Peritos Criminais, Médicos Legistas e Odontolegistas), os fatos ocorridos durante aquele período parecem, além de distantes, desconectados da realidade atual, como se pouco nos afetassem. Naquela época, nosso país vivenciava um regime ditatorial e uma intensa repressão, em especial contra a militância política contrária ao regime. Um período de pouca ou nenhuma liberdade, que afetou também a atuação da Perícia Oficial.

A principal e mais segura fonte sobre o tema é a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012, e que apresentou seu relatório final em 2014. A CNV teve por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.

Infelizmente, a atuação da perícia oficial na ditadura se deu muitas vezes no sentido de servir como um instrumento de produção de provas a serviço das autoridades policiais e militares responsáveis pela repressão. Deixando de lado a obrigação de respeito às normas científicas, que regem a produção de provas técnicas, muitos laudos apenas endossavam a versão que as autoridades ditatoriais haviam construído para justificar inúmeros crimes.

O trabalho da CNV comprovou que Institutos Médicos Legais e outros órgãos periciais foram coniventes, ao emitir laudos cadavéricos e certidões de óbito fraudulentas, modificando a causa da morte e até mesmo adulterando a própria identificação da vítima. A omissão de detalhes da morte quando ela estava relacionada à tortura era também o modus operante desse sistema, que antes de tudo representou uma grave violação dos direitos humanos enquanto perdurou.

No site da CNV podem ser visualizados laudos e relatórios que revisaram diversos casos, dentre os quais o de Vladimir Herzog, jornalista de origem croata, naturalizado brasileiro, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), encontrado morto no dia 25 de outubro de 1975 nas dependências do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-COD), órgão que personificava o processo se repressão e censura do poder vigente a época.

Dentre as 29 recomendações que constam no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, a de número 10 merece atenção especial:

“[10] Desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis”.

Tal recomendação é uma proposta que há muito tempo é defendida pela Associação Brasileira de Criminalística (ABC), entidade que representa os peritos oficiais no Brasil, e diz respeito à chamada autonomia dos órgãos de perícia oficial. O balanço sobre a vinculação dos órgãos periciais país afora pode ser resumido no trecho extraído do relatório “Políticas públicas de perícia criminal na garantia dos direitos humanos” de autoria de Flavia Medeiros (UFSC), produzido com o apoio da Fundação Friedrich Ebert (FES – Brasil):

Atualmente, dentre os 27 estados federativos, 18 (Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins) têm a perícia técnico-científica autônoma da Polícia Civil, mas vinculada à Secretaria Estadual de Segurança Pública, como Polícia Técnico-Científica. Em outros 9 estados (Acre, Amazonas, Distrito Federal, Espírito Santos, Maranhão Minas Gerais, Piauí, Rio de Janeiro e Roraima), a perícia tem seus órgãos funcionando como um departamento ou superintendência dentro da própria Polícia Civil, (exceto em Roraima cuja nomenclatura é Polícia Científica, mas está vinculada à Polícia Civil).”

Em um momento em que o país busca resgatar ao menos a dignidade manifestada pela verdade das informações, a Perícia aparece como um elemento capaz de nos lembrar que o passado pode nos ensinar muito a todos nós, até mesmo por meio de fatos que até hoje tanto nos maculam.

Cássio Thyone Almeida de Rosa - Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

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