SEGURANÇA PÚBLICA CÂMERAS CORPORAIS?
O QUE PENSAM OS POLICIAIS MILITARES DO DISTRITO FEDERAL SOBRE AS CÂMERAS CORPORAIS?
O ponto de partida da implantação das câmeras corporais deve ser compreender o que pensam os policiais e, a partir daí, traçar estratégias de mudanças organizacionais orientadas por evidências empíricas
20/01/2023 15h29 Atualizada há 2 anos
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/

As câmeras corporais tornaram-se comuns em diferentes polícias ao redor do mundo. Desde o pioneirismo da polícia inglesa no início dos anos 2000, a disseminação dos equipamentos nos Estados Unidos surgiu como resposta da administração de Barack Obama a casos de violência policial no país. As mortes de Michael Brown, Freddie Gray, Eric Garner, Tamir Rice e George Floyd, dentre outros, motivaram o engajamento do governo federal em reformas policiais, dentre elas as câmeras corporais.

No contexto brasileiro não foi diferente, e as câmeras corporais passaram a fazer parte do noticiário de segurança pública nos últimos anos. A repercussão de casos como o de Genivaldo Santos, morto em uma ação da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe, em maio de 2022, estimulou cobranças públicas por mais controle das ações policiais em todo o país. No poder legislativo, por exemplo, o Projeto de Lei nº 3.656/2021, de autoria do deputado Leo de Brito, prevê “o monitoramento e o registro das ações individuais dos agentes de segurança pública através de câmeras corporais (…), com capacidade de registrar tudo o que o agente vê, ouve, fala e faz”. No âmbito do Poder Judiciário, o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu em 03/02/2022, que o Estado do Rio de Janeiro deveria,” no prazo máximo de 180 dias, instalar equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança”. Com efeito, em levantamento realizado em 2021, vinte e cinco polícias militares informaram que já utilizavam ou pretendiam adotar as câmeras corporais, sendo que nove realizavam testes com os equipamentos.

A visibilidade das câmeras corporais está relacionada com a politização do tema na agenda nacional. De uma forma geral, num lado estão aqueles que defendem as câmeras como instrumentos de controle da atividade policial e estímulo à transparência nas instituições. São comuns argumentos que associam as câmeras à redução do uso da força, à qualificação da instrução processual e à melhoria das interações com os cidadãos. Noutro lado, estão aqueles que veem as câmeras como fatores de desmotivação dos policiais, levando à mitigação da iniciativa e da capacidade de resolução rápida de conflitos. Esse argumento ficou conhecido como despolicialização. De fato, a literatura acadêmica tem encontrado resultados inconclusivos sobre os efeitos das câmeras corporais em diferentes contextos e com designs variados de pesquisa. Apesar dos resultados no contexto brasileiro trazerem notícias alvissareiras, esse é um tema que merece mais atenção e análises rigorosas.

As câmeras corporais são inovações nas polícias brasileiras. Uma dimensão central na institucionalização de inovações em organizações complexas é o foco nos agentes. O que os policiais pensam sobre as câmeras corporais deve ser um dos fios condutores do processo de implementação das novas tecnologias. Como argumenta Goldstein (1977), é indiscutível que o apoio às mudanças é essencial para que elas funcionem e continuem ao longo do tempo. Com isso, desde o início de 2021, em uma parceria que reúne pesquisadores do Instituto Superior de Ciências Policiais, da Polícia Militar do Distrito Federal, e do Instituto de Psicologia, da Universidade de Brasília, temos buscado compreender aspectos relacionados à implementação das câmeras corporais no DF. Um dos primeiros estudos se dedica a analisar as atitudes dos policiais militares em relação às câmeras, e é justamente aquele que serve de título a esse artigo. Desde então, cerca de 1.500 policiais militares participaram da pesquisa, compondo uma amostra representativa da instituição, que era composta por pouco menos de 10.000 policiais à época da coleta de dados. Os resultados completos serão publicados em breve, mas alguns aspectos parecem importar para a orientação das políticas públicas na área.

Inicialmente, foi utilizada uma estratégia de pesquisa que, de forma inovadora, avaliou as percepções dos policiais militares antes mesmo da aquisição dos equipamentos. Com isso, são oferecidas oportunidades de adequação das funcionalidades das câmeras às necessidades dos operadores. O resultado inicial é inequívoco: a maioria dos policiais militares do DF é contrária à utilização das câmeras corporais.  Quando perguntados se acreditavam que a PMDF deveria adotar as câmeras para todos os policiais que trabalham no policiamento ostensivo, mais de 64% foram contrários. Tal resultado revela um contexto de dificuldades para o início do projeto.

Essa inclinação permanece inalterada entre homens e mulheres, oficiais e praças. Todas essas categorias foram majoritariamente contrárias à utilização das câmeras corporais, sem diferença estatisticamente significativa entre suas divisões. Um padrão, contudo, chamou a atenção: com o avanço da idade dos respondentes, a resistência às câmeras cai gradualmente. Assim, enquanto apenas 11% dos policiais mais jovens (aqueles com até 30 anos) são favoráveis às câmeras corporais, o percentual se inverte dentre aqueles mais experientes (acima dos 50 anos), alcançando 56%. Uma relação muito semelhante foi observada em relação ao tempo de serviço dos respondentes.

Outra tendência relevante opõe os policiais de rua àqueles dedicados ao serviço administrativo. Apesar de a maioria ser contrária à utilização das câmeras em ambos os casos, o percentual dentre os operacionais (70%) é muito superior ao dos administrativos (55%). Logo, é razoável supor que os policiais mais implicados pela adoção das novas tecnologias, justamente os mais novos, com menos tempo de serviço e que trabalham nas ruas, são os mais avessos às câmeras corporais. De uma forma geral, a imagem das câmeras é negativa sob a ótica dos policiais militares, o que exigirá uma atuação cuidadosa dos responsáveis pelo projeto.

Em seguida, analisamos algumas dimensões que qualificam e detalham as percepções dos policiais militares sobre as câmeras corporais. Uma delas foi o controle social percebido. Conforme esperado, a percepção de controle foi a variável com maior capacidade explicativa sobre a (não)adesão às câmeras corporais. Assim, a percepção de que as câmeras facilitariam a instauração de procedimentos em casos de faltas disciplinares ou mesmo que os policiais teriam maior preocupação em explicar os motivos das abordagens são exemplos de itens fortemente associados à dimensão de controle e que, na opinião dos policiais, mitigam a adesão às câmeras. As análises estatísticas indicaram que o controle social percebido se manteve como o principal elemento influenciando atitudes contrárias às novas tecnologias em diferentes cenários e modelos. Como ilustração, o impacto negativo do controle social percebido é, em média, de 27% sobre as chances de um policial militar ser favorável às câmeras corporais. Nesse ponto, parece haver uma distorção entre o que se espera das novas tecnologias e o que já faz parte da rotina do trabalho policial. Não são as câmeras que exigem a prestação de contas ou a responsabilização dos policiais, é a própria condição de servidor público. Logo, parece central situar as câmeras como um recurso para o aperfeiçoamento do trabalho policial e não como um cavalo de troia para punir policiais. A imagem negativa das câmeras parece estar consolidada em torno da função de controle social.

Outro ponto que merece destaque é o reconhecimento social dos policiais militares. A percepção de que as câmeras podem servir para que os superiores reconheçam a qualidade do trabalho realizado ou mesmo que a performance em ocorrências seria elogiada foi uma dimensão relevante em reduzir as resistências às câmeras. Por exemplo, o aumento de um ponto na média da percepção de reconhecimento social tem o potencial de aumentar em mais de 35% as chances de o policial ser favorável às câmeras corporais. Essa é uma característica positiva e pouco explorada dos equipamentos. Além disso, tal resultado não foi relatado em outras pesquisas semelhantes em outras polícias no Brasil e no mundo. Juntamente com as funcionalidades educacionais e de treinamento, a possibilidade de as câmeras estimularem o reconhecimento do trabalho realizado de forma correta possui um potencial ainda pouco explorado pelas polícias. Esse parece ser um contraponto à imagem negativa das câmeras dentre os policiais militares.

Um dos riscos associados a processos de inovação conduzidos sob uma lógica top-down, condicionada apenas a determinações da chefia, é estar descolado das práticas organizacionais já existentes. A não adesão dos policiais da ponta da linha é decisiva para a descontinuidade de qualquer processo. Tal qual um novo armamento ou uma nova viatura, as câmeras corporais oferecem possibilidades de alteração no funcionamento de toda a organização. Mas as câmeras não farão o trabalho policial, e qualquer expectativa de serem, por si só, agentes de mudanças será fadada à frustração. As câmeras são instrumentos para os policiais e não o oposto. A experiência mostra que profecias autorrealizáveis não são comuns na segurança pública brasileira. O ponto de partida da implantação das câmeras corporais deve ser compreender o que pensam os policiais e, a partir daí, traçar estratégias de mudanças organizacionais orientadas por evidências empíricas. Apenas assim será possível articular as expectativas às possibilidades reais de melhoria do trabalho policial no país.

MÁRCIO JÚLIO DA SILVA MATTOS - Major da PMDF, Doutor em Sociologia e Pesquisador Colaborador do CEPATS/UnB.