POLÍTICA DITADURA DA MAIORIA
Democracia não é “DITADURA DA MAIORIA"
Publicado originalmente em 14.09.2014 por Pedro H. Costa
21/01/2023 11h39
Por: Carlos Nascimento Fonte: https://universoracionalista.org

Há atualmente uma confusão muito grande a respeito do que seja a democracia em sua essência. Cabe ressaltar que a “ditadura da maioria”, como vem sendo chamada, é parte de um discurso defendido por alguns membros de elites, de grupos que se colocam como opressores de camadas minoritárias da população.

A “maioria” como organização definidora do que é justo ou injusto, certo ou errado. Daí a concepção “ditatorial”, porém confusa e lacunosa, fazendo com que várias críticas sejam feitas a seu respeito. A democracia convertida em um veículo de autoritarismo, como um instrumento de dominação, na visão destes “superiores”.

Já adianto que não sou da área das Ciências Sociais, mas um grande defensor da democracia como ideal e princípio de vida em sociedade. Como cidadão, me sinto obrigado a ter esse exercício racional, que se traduz por meio deste texto. Devemos todos nós, enquanto dotados dessa mesma condição de cidadania, pensar o quanto o conceito de democracia como visto atualmente está distorcido.

Primeiro é preciso definir o conceito de democracia, além, é claro, dos vários conceitos atrelados à sua definição formal.

Friede (2011) aponta a democracia como sendo, segundo Aristóteles, uma das três formas “puras” de governo possíveis. Situa-se ao lado da aristocracia e da monarquia. Ainda para o autor, Platão separa a democracia em “legal” ou “arbitrária”. Políbio via a democracia como forma de governo ideal, juntamente com a aristocracia e a monarquia em medidas proporcionais. Maquiavel via a democracia como o exercício do poder plural da república, por sua vez uma forma de governo na qual o poder é coletivo. Montesquieu via a república como uma dualidade entre aristocracia e democracia, cuja natureza para ele expressava a “soberania nas mãos do povo”, cujo princípio era a “virtude traduzida em amor à pátria, igualdade e compreensão dos direitos e deveres”.

Para servir de exemplo, podemos falar em acessibilidade, que nada mais é do que a facilidade de acesso para pessoas que possuem limitações em relação aos demais indivíduos. Um caso cotidiano é a acessibilidade para cadeirantes, que possuem limitações físicas para acessar determinados espaços ou estabelecimentos. Cadeirantes não se constituem em uma maioria, mas são cidadãos com os mesmos direitos que os demais. Numa democracia, as necessidades dos cadeirantes devem ser ouvidas, pelos próprios, para que melhorias possam ser propostas. Assim, por puro bom senso, a maioria pode deliberar sobre a acessibilidade, contemplando as necessidades de todos, sem exceção. O que incluiria, nesse caso, as necessidades dos cadeirantes.

A diferença entre minoria e maioria, em particular, se faz pelo número. O que não é regra, pois minorias podem ser constituídas de grupos excluídos, não necessariamente menores em número de indivíduos. Os cadeirantes, além de serem poucos em número, são preteridos e pouco atendidos pela infraestrutura urbana, por exemplo. A falta de políticas inclusivas é algo que acompanhou a nossa realidade cotidiana, tendo gradualmente mudado. Só não entrarei em detalhes, pois novamente fugiria da minha alçada, que não é jurídica.

Na área da Saúde é algo que enfrento, não por mim, mas por pessoas que eventualmente deixam de ser assistidas, que são diminuídas em sua diferença. A maioria das pessoas, novamente por puro bom senso, pode buscar melhorias para essa parcela de cidadãos, de modo a incluir suas necessidades na lista de prioridades cotidianas. Estou certo de que isso não seria problema, mas sim um conjunto muito nobre de ações, que beneficiariam pessoas que infelizmente não possuem nenhum tipo de apoio tão direto quanto é preciso.

Espero que o exemplo tenha clarificado um pouco, mostrando que a democracia é um modelo que abrange a integração de setores da sociedade, parcelas da população ou grupos, sem que um prevaleça sobre o outro.

Com o intuito de encerrar a minha exposição, coloco aqui um trecho do § 73, “Finalidade e função da política. Necessidades a que corresponde” (página 328), do livro Ética (2012), do autor Sérgio Sérvulo da Cunha: “Modernamente, o conceito de democracia sofreu significativas alterações: ele não se confunde, em primeiro lugar, com assembleísmo; também não se confunde com ilimitação do poder popular; consequentemente, e por último, não se confunde com governo da maioria. Resumindo: o fundamento da democracia está em que as decisões quanto ao governo da sociedade, que obrigam a todos os seus membros, que dependem da decisão desses membros. Muitos confundem o princípio democrático com a regra da maioria, mas esta é apenas um expediente para a tomada de decisões*; ela não significa que a fonte do Direito é a vontade da maioria, pois essa vontade, e sua manifestação, está sujeita a critérios que protegem direitos fundamentais das minorias. Na democracia não pode haver decisão tomada por um só, decisão tomada por alguns, decisão tomada por muitos e decisão tomada por todos. É importante que todos tenham decidido ou podido decidir sobre quais sejam esses casos”.

* Nota do autor 694: Aristóteles já assinalava que a regra da maioria apresenta-se em todas as constituições, sejam aristocráticas, oligárquicas ou democráticas (Política, 1294a, livro IV, cap. VIII, § 7, cit. cf. a edição Ernest Barker, Oxford Un. Press, 1991).

Com esse último referencial, podemos concluir que a “ditadura” ou regra da maioria não é um fim em si mesma, mas um meio pelo qual é possível erguer a base da democracia. Desde que todos tenham a oportunidade de deliberar sobre o que é correto como destino da população, a maioria pode então prevalecer. Todos tendo como direito a candidatura a cargos políticos, a opinar e a dar voto.

Democracia é dar voz aos que não conseguem falar tão alto, ou que sequer podem falar. Para que possam ser ouvidos também, de forma a darem um parecer, mesmo que contrário ao que grande parte da população quer. Democracia não é apelo à maioria, muito menos “ditadura”.

Referências:

1) CUNHA, S. S. Ética. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 328.

2) FRIEDE, R. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense 2011.

Pedro H. Costa - Bacharel em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atuo desde 2012 no Centro de Estudos e Pesquisas sobre Álcool e outras Drogas, pela mesma instituição. Interessado em saúde, educação, ciência e filosofia.