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DEMOCRACIA, LEI E ORDEM

Esquerda e direita, as civilizadas, as que convivem de forma pacífica, as que respeitam os limites de suas posições, as que reconhecem que não são donas da verdade absoluta, precisam chegar a consensos sobre os fatos que ocorreram no dia 8 para prevenir o futuro.

27/01/2023 às 22h40
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/
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DEMOCRACIA, LEI E ORDEM

Já disse aqui, outrora, que vivi uma infância pobre, talvez nem muito feliz. Não deve ter sido pior nem melhor do que a infância que a maioria dos brasileiros e brasileiras viveram e vivem. Pensando bem, deve ter sido um pouco melhor, pois recebíamos (meu pai e minha mãe) dois salários mínimos mais uma pensão equivalente a pouco menos de dois salários mínimos que era oriunda do meu avô, que mal conheci, por conta de ele ter sido funcionário civil do Exército Brasileiro. Há uma parcela imensa da população brasileira que nem isso tem por renda.

Mas não é sobre isso que quero falar hoje.

Quero apenas fazer uma digressão sobre os vaticínios de minha mãe. Aliás, acho que todas as mães têm uma capacidade sensorial extraterrestre multidimensional e plurifuncional de adivinhar o futuro e preservar o presente de seus filhos e filhas. Para um cético e incrédulo como eu, parece uma dissociação cognitiva, mas, infelizmente, por experiência própria, creio nisso. Não tenho mais tempo em vida, nem conhecimentos ligados à neurociência para comprovar essa minha tese. Mas acho que milhares de anos criaram uma capacidade de as mães cruzarem uma infinidade de dados e variáveis e “predizer” o futuro.

O fato é que ela falava, eu e meu irmão não acreditávamos, fazíamos o contrário, dávamo-nos mal e, mais tarde, lá vinha ela: “eu não falei?!”. Confesso que tenho um certo trauma em relação ao eu não falei? que ela pronunciava quase que cotidianamente. Isso nos gerava uma sensação de impotência e incompetência próprias muito grande.

Pois bem, é sobre algo semelhante que quero tratar hoje.

Tivemos, no dia 08 de janeiro de 2023, um dos dias mais infames, tristes e sujos de nossa história.

Vândalos, radicais, extremistas, ultradireitistas e opositores da democracia invadiram a praça dos Três Poderes e, simbolicamente, tomaram a sede do Executivo, Legislativo e Judiciário. Digo simbolicamente porque o poder não reside em prédios, edificações e palácios. Mas, muito provavelmente, foi essa a dimensão que suas racionalidades lhes deram. “Fizemos justiça; tomamos o poder”.

Esquerda e direita, as civilizadas, as que convivem de forma pacífica, as que respeitam os limites de suas posições, as que reconhecem que não são donas da verdade absoluta, precisam chegar a consensos sobre os fatos que ocorreram para prevenir o futuro.

Precisamos fazer do “limão uma limonada”. Por ora, esse limão está muito amargo, difícil de digerir, grande demais para engolir.

Mas só a democracia permite que os antagônicos encontrem pontos de vista que sejam comuns para preservar a própria república e a própria democracia. Vejamos alguns deles.

Sindicalização e direito de greve das Polícias Militares

Lá pelos anos 90, mais especificamente em 1997, tivemos uma das primeiras greves de grande proporção dos anos pós-redemocratização. Em São Paulo, também tivemos uma, em 1988. Logo depois, já no século 21, houve a eclosão de inúmeras greves de policiais militares, país afora.

Por esses idos, eu, ou estava no Centro de Inteligência da Polícia Militar de São Paulo, ou no Estado Maior. O desiderato dos partidos de esquerda, à época capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores, foi o de aprovar medidas legislativas tendentes a anistiar os policiais militares grevistas.

Eu próprio fui encarregado, certa feita, de redigir ofício, em nome do Conselho Nacional de Comandantes Gerais (CNCG) — para ser assinado pelo presidente do CNCG — apontando os equívocos em se aprovar uma “anistia ampla geral e irrestrita”. Colhemos um pouco do que plantamos há quase três décadas. Em quase todos esses movimentos, os policiais militares grevistas retornaram a suas fileiras. Empoderados, evidentemente. A hierarquia e a disciplina foram sendo corroídas. Eu, e alguns outros poucos colegas, que não éramos nem tão conservadores quanto a esquerda nos chamava, nem tão esquerdistas quanto a direita da caserna nos denominava, ficávamos em posição minoritária em praticamente todas as questões que se colocaram nestes últimos trinta anos. Mas é preciso acharmos pontos de contato entre esses dois segmentos.

Lei Antiterrorismo

A Lei 13.260/16 prescreve textualmente:

Art. 2.º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

[…]

2.º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.

O debate está bastante candente hoje, na sociedade, acerca de se os manifestantes do famigerado dia 8 de janeiro podem ser enquadrados como terroristas. O ministro Alexandre de Moraes, em posse do chefe da Polícia Federal, manifestou-se no sentido de serem os golpistas (termos que entendo ser mais apropriado) “terroristas”.

Sou pelo entendimento de que não podemos atribuir a esses golpistas o atributo de terroristas, infelizmente. A esquerda lutou, ardentemente, no período de formulação da lei, para que atividades políticas não se enquadrassem como terror. Tais atos, praticados no dia 8 de janeiro, não se enquadram na tipificação do artigo segundo da referida lei (xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião). Seria muito forçoso tentar enquadrar atos políticos na definição acima. A lei penal é, antes de tudo, restritiva. Esse é um dos pressupostos básicos da democracia liberal.

Atuação da Polícia Militar

O papel de um policial militar é dos mais delicados e complexos. Ele anda no fio da navalha. Por isso precisa ter bem delineadas suas competências e atribuições.

Outrora, quando ele agia com rigor nas manifestações e nas passeatas, era tratado como arbitrário.

No evento em tela, a grande falta que a Polícia Militar do Distrito Federal cometeu não foi “acompanhar” os manifestantes. Os grandes equívocos foram de outra ordem, com falhas generalizadas: (i) nos serviços de inteligência, ao não detectarem o animus dos manifestantes; (ii) por não terem delimitado o trajeto a ser feito; (iii) por não estabelecerem cordões de isolamento; (iv) no planejamento operacional da passeata, visto que havia indícios mais que veementes do intuito de seus participantes; (v) na conduta individual dos policiais militares que acompanharam o evento.

Garantir de forma pacífica e com preservação da ordem pública é o papel das Polícias Militares. Não se pode desejar que se desça o “cassete” nos opositores e se trate com “delicadeza” os aliados.

Discutir o papel das polícias de preservação da ordem pública é atividade que transcende esquerda e direita.

Papel dos serviços de inteligência

Na segunda metade dos anos 80, o então deputado estadual José Dirceu queria desmontar o Centro de Inteligência da Polícia Militar de São Paulo. Para Dirceu, a 2ª Seção do Estado Maior da Polícia Militar era retrógrada e antiquada.

Agora, vemos bradar: “Cadê a produção de inteligência em relação aos ocorridos?”. O fato é que, em grande parte dos Estados, os órgãos de inteligência foram desmantelados, desestruturados e, até mesmo, extintos.

Esta é a razão pela qual deva haver regulamentação legal em relação aos diferentes órgãos do serviço público e eles devam, no caso da área de inteligência, produzir análises de todo e qualquer movimento que transgrida os limites aceitáveis para o que se pressupõe uma democracia liberal.

Invasão de prédios públicos

Lula foi rápido em falar que a “esquerda” nunca invadiu a sede dos poderes. Outros líderes de esquerda também se manifestaram no mesmo sentido. A realidade e os fatos históricos demonstram o contrário. As redes sociais foram rápidas em mostrar vídeos de líderes do PT e do PSOL justificando “badernas” e “quebradeiras” motivadas e patrocinadas por entidades de esquerda.

Em linhas gerais: o que é que vale? Justifica-se um tipo de manifestação, mas não se justifica o de outro lado? Como o policial da base da hierarquia vai entender essa complexa equação?

Não vou agir como minha mãe, outrora: “eu não disse?”.

Mas a democracia pode encetar esforços para que cada um desses pontos sejam discutidos, amadurecidos e se achem denominadores em comum.

Se não aproveitarmos os lastimáveis fatos do dia 8 de janeiro para avançar no aprofundamento da democracia, tudo será em vão.

GLAUCO SILVA DE CARVALHO - Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo.

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