SEGURANÇA PÚBLICA MULTIPLAS VOZES
De uma Guarda Nacional militarizada do Império à Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil
Passou da hora de se estabelecerem amplas reformas na segurança pública. A criação da Guarda Nacional Permanente de caráter civil, para atuar no DF e em todo o território nacional, representa um passo importante.
05/02/2023 16h48
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/

O Brasil já teve uma Guarda Nacional, criada em agosto de 1831, no Período da Regência. O período regencial caracterizou-se como um momento tenso da história brasileira, tendo o país sido palco de várias revoltas, como a Balaiada no Maranhão e a revolta dos negros malês na Bahia.  A tensão entre o governo central e as províncias era grande. Houve também revolta envolvendo uma unidade do exército, no Rio de Janeiro, o que criou desconfianças do governo central com o exército regular, sendo esta uma das motivações para criação da Guarda Nacional.

Em 1840, deputados e senadores aprovam a “antecipação da maioridade” do príncipe regente do Brasil e Dom Pedro II assume o trono com 14 anos de idade, dando fim ao período regencial.

A Guarda Nacional continuou a crescer no Império. Contava com artilharia, cavalaria e infantaria. Chegou a ter mais de 300 mil praças e teve efetivo maior que o do exército regular na Guerra do Paraguai. Era a maior força policial militar do império.

Seu efetivo de comando superior, oficiais e praças era formado por cidadãos eleitores, grupo restrito àqueles que atendiam a critérios mínimos de renda estabelecidos pela Constituição política do Império. Portanto, a Guarda Nacional do Império era formada pelos indicados das oligarquias rurais e comandada por elas, o que explica o preconceito histórico das polícias contra pobres e negros e sua cultura oligárquica.

Com o advento da República, em que o Exército teve papel preponderante, a Guarda Nacional foi absorvida por ele, até ser definitivamente extinta em 1922. Durante 91 anos foi a principal instituição policial militar do país.

Na primeira gestão do presidente Lula, o Ministério da Justiça, sob o comando do ex-ministro Márcio Thomas Bastos, criou, em 2004, a Força Nacional, como um Programa Federativo em que policiais militares, principalmente das unidades de choque (depois também policiais civis), recebem diárias para atuar em nome da União. Houve emprego da Força Nacional em vários estados, solicitado pelos governadores, em situações de crise na segurança pública e ou no sistema prisional estadual.

Minha intuição é que a Força Nacional foi idealizada para um prazo curto, mas não foi isso o que aconteceu. Ela completará 19 anos neste ano e segue sem plano de cargos e salários, sem estrutura hierárquica adequada, sem código de conduta próprio e sem órgão corregedor, estruturas essenciais que caracterizam a organização de uma Força Policial.

A título de exemplo, se numa operação da Força Nacional for verificado que houve excessos no uso da força, quem vai apurar os excessos? Será difícil para a União, porque os policiais são estaduais, e para os Estados, porque os policiais estão a serviço do governo federal. Este é apenas um dos desafios de se manter uma “meia instituição” improvisada e sem estrutura adequada.

A solução para essa questão passa pela criação da Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil, uniformizada e armada, preventiva e repressiva, que seria a primeira Instituição Nacional de Segurança Pública criada na transição democrática. Sua estruturação no sistema de segurança pública se daria através de uma PEC alterando o artigo 144 da CF. A nova Guarda diferiria radicalmente da Guarda Nacional do período do Império, pois não será criada para defender os interesses da elite brasileira e, também, será de caráter civil, ou seja, não será uma instituição militar e/ou subordinada às FFAA. Com sua criação, se extinguiria a Força Nacional.

A Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil deve ser estruturada por concurso público, com plano de cargos e salários, com código de conduta civil próprio, com corregedoria própria, formação adequada e estrutura hierárquica pautada em carreira única.  Na verdade, sua criação pode representar a primeira oportunidade de a democracia ter uma instituição policial da União nova, com ciclo completo e carreira única desde a sua criação, e uma formação voltada para a defesa do estado democrático de direito, dos direitos fundamentais e com expertise para mediação de conflitos e repressão qualificada contra o crime organizado nas suas mais amplas modalidades.

O custo de sua estruturação talvez não fosse muito maior que o custo de diárias dos policiais de vários estados que compõem a Força Nacional, e, uma vez criada, se resolveria uma situação que se arrasta há quase duas décadas, de um programa que também é “meia instituição policial” improvisada e sem estrutura adequada.

Uma das missões da futura Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil será cuidar dos próprios da União e, em especial, dos prédios dos Três Poderes da República e embaixadas. Para tanto, precisará ter um efetivo específico para o Distrito Federal. Mas ela deve ser estruturada para ter atuação em todo território nacional, com ações nas fronteiras e na Amazônia, para coibir o desmatamento, o tráfico de drogas, a grilagem, o garimpo ilegal e proteger os povos indígenas. Além disso, deve apoiar os estados, quando for solicitada, atuando em situação de grave crise na segurança pública e/ou no sistema prisional estadual, levando, a curto e médio prazos, à diminuição do emprego das FFAA na Segurança Pública, através das GLO.

Portanto, a expectativa é de que o Ministério da Justiça e Segurança Pública proponha ao Congresso Nacional a criação da Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil, com atuação em todo território nacional.  Criar uma Guarda Nacional restrita ao DF representa um grande equívoco.  Enquanto não ocorre a criação da nova Guarda, poderia se verificar a possibilidade de se federalizar parte do efetivo da Polícia Militar do DF, na medida em que a União contribui diretamente com os salários desses policiais.

Para cumprir com todas estas atribuições, a futura Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil precisaria contar com um efetivo inicial de pelos menos 5 mil policiais (e efetivo fixado de 15 mil policiais), podendo ser conferida uma pontuação extra no concurso de ingresso aos policiais que serviram na Força Nacional.

Dessa forma, a criação da Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil, por mais fundamental e urgente que seja, não pode ser intempestiva. Da aprovação da PEC até o concurso público, formação, criação de código de conduta, corregedoria e estrutura hierárquica, se levará no mínimo de um a dois anos. Não dá para improvisar uma instituição desta relevância.

O atual sistema de segurança pública, anacrônico e autoritário (que não se alterou em 1982 e nem mesmo após a CF de 1988), abre brechas para o surgimento de milícias e para a proliferação de narrativas demagógicas beligerantes, que estimulam uma atuação violenta das instituições policiais. A Necropolítica aniquila a juventude negra.

A extrema direita fascista, representada pelo bolsonarismo, ampliou sua presença nas instituições policiais. Entre as razões que permitiram esse fenômeno está a omissão da transição democrática em relação à pauta da segurança, ao não dar centralidade à criação de uma nova política de segurança pautada no tripé: democracia, cidadania e antirracismo. Fortalecer a democracia passa por se lançar luz a essa importante e complexa questão, e não é mais cabível que o campo democrático se omita desse debate. Esta centralidade da nova política de segurança pública ainda será mais consistente se for realizada por um órgão gestor nacional próprio.

Passou da hora de se estabelecerem amplas reformas na segurança pública. A criação da Guarda Nacional Permanente de caráter civil, para atuar no DF e em todo o território nacional, representa um passo importante, compondo, junto a outras propostas de reformas, as Diretrizes Gerais do IREE, elaboradas pelo Núcleo de Segurança Pública na Democracia e lançadas em março de 2022.

Por último, quero enfatizar que as instituições policiais devem ser apartidárias e sem ideologias, porque são instituições permanentes do Estado Brasileiro, e não dos governos. Elas podem e devem, dentro de suas atribuições legais, ser sustentáculo do estado democrático de direito e da democracia, que são valores universais.

Os governos federal e estaduais do campo democrático têm responsabilidade direta na construção gradativa de uma segurança pública democrática, cidadã e antirracista. Temos esperança de que isso se realize, em grande parte, na terceira gestão do presidente Lula.

BENEDITO MARIANO - Sociólogo, Mestre em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo. É coordenador do Núcleo de Segurança Pública na Democracia do IREE e Secretário de Segurança Cidadã da Cidade de Diadema. Membro do FBSP.