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Taxa de esclarecimento criminal e o "funil do crime"

O baixo índice de identificação dos autores de crimes está entre os (muitos) elementos que ajudam a entender os níveis atuais de violência e criminalidade no país.

17/02/2021 às 11h03
Por: Carlos Nascimento Fonte: Fonte Segura
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Taxa de esclarecimento criminal e o

Um dos indicadores clássicos de desempenho da polícia judiciária em todo mundo é a taxa de esclarecimento de crimes. O conceito de esclarecimento não é unívoco mas, regra geral, entende-se “esclarecimento” como identificação do autor do crime, com elementos suficientemente concretos para se chegar a ele e indiciá-lo criminalmente. Não é preciso que ele seja efetivamente preso para que o caso seja “esclarecido”. Esta é apenas uma modalidade, conhecida por "clearence by arrest".

Além das divergências conceituais, existem também diferentes modos de calculá-lo: quando o autor é preso em flagrante, o crime já está implicitamente esclarecido. Mesmo quando não há o flagrante, é frequente que casos cheguem ao distrito policial com a autoria praticamente esclarecida, como ocorre em homicídios domésticos ou cometidos entre pessoas que se conhecem. Nessas situações, inexiste, na prática, o esforço investigativo em busca da autoria. Devemos incluir ou excluir estes flagrantes ou crimes semiesclarecidos no indicador de desempenho?

Como quer que seja definido ou operacionalizado, ocorre que no Brasil é raro as polícias estaduais divulgarem publicamente esse indicador. Algumas o omitem porque são vergonhosos. Outras, sequer o calculam internamente, pois nossas polícias não estão habituadas a serem monitoradas através de indicadores e remuneradas pelo atingimento de metas. O fato é que não se sabe ao certo qual é a taxa de esclarecimento de crimes no Brasil, exceto que ela tende a ser baixa e que varia bastante de crime para crime.

Essa percepção, de que é importante para as próprias instituições acompanharem seu desempenho no tempo e avaliarem como se posicionam com relação ao benchmark, é relativamente recente.

O Instituto Sou da Paz realiza um levantamento, há três anos, sobre a taxa de esclarecimento de homicídios no Brasil. Apenas 11 dos 27 estados forneceram dados que permitem calcular o índice, na edição de 2020, para um dos crimes de maior gravidade para a sociedade. A taxa média de esclarecimento de homicídios para esse grupo de estados é de 33%, enquanto na Europa este índice é de aproximadamente 92% e nas Américas 43%.

Os estados, por ordem de esclarecimento, são Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Rondônia, São Paulo, Espírito Santo, Mato Grosso, Paraíba, Acre, Penambuco e Rio de Janeiro. Assim mesmo, os dados foram obtidos por meio de consulta aos tribunais estaduais e raramente são publicados pelas próprias polícias.

Estamos falando de um crime onde é comum vítimas e autores terem algum tipo de relação, cuja elucidação é cobrada pela opinião pública, privilegiado pelas polícias em todo o mundo como o “filé” da atuação policial e onde frequentemente existe um departamento especializado e mais recursos para a investigação.

Assim mesmo, o esclarecimento dos homicídios no Brasil chega apenas a 1/3 dos casos. A taxa tende a ser maior nos crime graves, como chacinas, sequestros, latrocínios e roubos a banco. E menor nos crimes patrimoniais, de menor valor, e onde não houve contato entre autor e vítima. Assim, a média de esclarecimento de crimes é provavelmente menor do que a encontrada para os homicídios.

Mas de quanto será esta taxa?

Já mencionamos aqui a Pesquisa Perfil das Polícias, organizada pelo Ministério da Justiça desde 2002 e que coleta centenas de informações anuais para a PM, Polícia Civil e Bombeiros. Analisamos em outro artigo os níveis hierárquicos da PM com base na pesquisa, mostrando algumas inconsistências nas quantidades de efetivo em cada patente. Nas últimas edições da pesquisa, diversas instituições passaram a responder ao questionário do Ministério da Justiça, que pergunta o total de boletins de ocorrência registrados no ano, total de Inquéritos instaurados por portaria, por flagrante e inquéritos remetidos com indiciamento. Tivemos que estimar alguns valores para o Acre, São Paulo e Maranhão, mas feitas estas estimativas, e partindo do pressuposto de que o indiciamento significa que a autoria foi razoavelmente estabelecida, é possível dar alguma dimensão ao problema.

Como se vê, na última coluna da tabela, a taxa de esclarecimento média de todos os crimes ficou em 6,29%, em 2019, variando entre 1,15% e 11,95%. É claro que o indiciamento pode ter relação com os casos ocorridos em anos anteriores mas, de modo geral, supomos que na maioria dos casos os inquéritos relatados e remetidos têm relação com casos ocorridos no mesmo ano e que os estoques anuais são razoavelmente constantes.

Ao todo, tivemos, em 2019, algo em torno de 14 milhões e 700 mil ocorrências policiais. A se fiar nas pesquisas de vitimização, os crimes registrados refletem em média apenas 1/3 dos ocorridos, de modo que podemos considerar, para efeito ilustrativo, que 44 milhões de crimes é uma cifra mais próxima da realidade. Significa quase um crime para cada cinco pessoas num ano.

Destes 14,7 milhões de registros, apenas 929 mil converteram-se em indiciamentos pela Polícia Civil (6,29%). E, como discutido, isso não significa que todos os autores identificados foram presos. Seja porque não foram capturados ou porque o tipo de delito e de réu não implicava em condenação ao regime fechado. Destes indiciados, “apenas” 28 mil entram para o sistema prisional anualmente, que contava com 812 mil condenados em 2020.

Trata-se de um funil punitivo gigantesco. Chamamos isso de taxa de atrito, que tem na boca 44 milhões de crimes e na ponta 28 mil presos por ano. Usando as estimativas para 2019, a taxa de atrito é de 0,06%. Este é um dos motivos pelos quais não podemos contar apenas com o sistema de justiça criminal para conter a criminalidade, uma vez que a expectativa de punição no Brasil é baixa.

Faz sentido pensar exclusivamente em aumentar penas, como fazem nossos congressistas, quando a expectativa de punição é tão baixa? Qual o efeito de intimidação do aumento das penas com uma taxa de atrito de 0.06%? Os cálculos são apenas aproximados, mas servem para dar uma ordem de grandeza ao problema: é muita gente sendo presa, mas, assim mesmo, o percentual é ínfimo diante da quantidade de crimes perpetrados.

Voltando à tabela e às taxas de esclarecimento por estado, não parece existir um padrão geográfico. Vemos estados do Norte no topo (Acre, Amazonas e Amapá) e na base da lista (Tocantins e Roraima). Do Sul, Paraná aparece no topo e Santa Catarina na base. Chama a atenção, talvez, a presença de três estados do Centro-Oeste no topo (Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) e a relativa ausência do Nordeste, com exceção de Pernambuco.

Tampouco parece haver uma relação com a quantidade absoluta de boletins de ocorrência, pois encontramos estados com poucos registros nos dois extremos. Distrito Federal, que tem a polícia mais bem paga do país, possui taxa de esclarecimento geral abaixo da média. A pesquisa permite calcular as taxas específicas para alguns tipos de crime. Em algum momento, com tempo e recursos, pretendo voltar ao tema. Trata-se de uma fonte subutilizada pelos pesquisadores brasileiros e pode render muitas análises frutíferas.

Não é caso de nos estendermos aqui nos fatores que explicam a maior ou menor taxa de esclarecimento em cada polícia. Até porque, como discutido, é preciso chegar a uma definição consensual do que seja esclarecimento e calculá-lo de modo uniforme. As taxas de notificação de crimes por estado também precisariam ser conhecidas, bem como o perfil de crimes em cada local, que afeta esta taxa média.

O ponto principal é a necessidade urgente de se produzir esses indicadores. Monitorar, incentivar e premiar as unidades que conseguem um bom desempenho, ajudando com recursos humanos e materiais aquelas que estão em dificuldade. A ideia não é punir, mas aumentar a eficiência da investigação.

O baixo índice de esclarecimento de crimes é um entre os muitos elementos que ajudam a entender os níveis de violência e criminalidade no país. Melhorar a taxa de esclarecimento não é uma panaceia, mas é um dos muitos elementos que devem ser aperfeiçoados. Os dados sugerem que para ser preso no Brasil é preciso algum esforço: ser muito burro ou muito azarado. Impunidade ainda é a regra.

(*) Túlio Kahn - Consultor sênior na Fundação Espaço Democrático e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

 

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