Brutalidade policial e definição do papel das polícias no Brasil foram cobertas pelo noticiário nas últimas semanas. Por um lado, a questão da capacidade de a polícia prover segurança pública no Rio de Janeiro sem que pessoas morram em razão da declaração de guerra, e, por outro, a discussão no plano legislativo federal sobre o mandato e a formatação institucional dessas corporações nos arranjos políticos nacionais.
Foram essas as manchetes que guiaram as discussões recentes sobre o tema. Aspectos diferentes sobre uma atividade tão trivial e corriqueira que, no fundo, se resume à vigilância de pessoas em prol de uma determinada noção de ordem.
Entre ambos os problemas, uma concepção bastante forte de que as polícias escolheram – temos aí um ator que define a noção de ordem – atribuírem a si o papel de combate ao crime, dentro de uma lógica de guerra. Nessa ideia, insulamento institucional e falta de governança permitem às polícias definirem a si mesmas suas políticas que, por sua vez, dissociam-se dos projetos de cidadania que buscamos construir. Concordo. Pausa.
Uma das características das corporações profissionais é constituírem barreiras que estabeleçam fronteiras para os de fora. Proteção às suas ideologias, a seus pares às suas estratégias de afastarem-se de penetrações externas compõem esforços de diferentes corporações.
Todavia, isso deixa de ser um problema endógeno para ser um problema público se essas corporações desempenham funções sociais relevantes para o conjunto da sociedade. E pode constituir mais graves danos à vida coletiva se essas instituições são estatais.
A despeito das constrições que se colocam sobre as profissões como resultado das pressões que a sociedade impõe em sua dinâmica, há certa clareza sobre o papel de juízes, professores, médicos, guardas de trânsito etc. Essa definição se dá em duas esferas: uma mais macro, ou política, mediada por canais de diálogos coletivos, como sindicatos, imprensa e, no limite, a própria lei. Outra se dá nas microrrelações em que os papéis sociais são construídos nas interações cotidianas.
Voltemos, assim, à questão da polícia.
Churrascos, bares e táxis são locais que muitas vezes utilizamos para compreender as diferentes percepções das pessoas sobre nossos lugares sociais. Em muitos delas, identificar-se como policial era especialmente revelador, como trago uma experiência a seguir.
- Você faz o quê?
- Sou policial. Polícia Militar.
- Ah, entendi.
Pausa. Futilidades.
- Mas, viu. Tá difícil pra vocês trabalharem não? Vocês estão mais que certos, ladrão tem mesmo é que morrer!
Na profissão, em ambientes de interação comunitária, as falas não eram diferentes: “Morreu bem”, disse-me uma líder comunitária, em uma periferia paulistana. “É aqui nesse quartel que eu encontro umas pessoas para matar alguém?”, uma senhora me questionou na companhia de policiamento que eu comandava.
Para além do universo das interações primárias, outro aspecto a ser considerado para a conformação de uma ética profissional refere-se aos estatutos e leis. No caso do Brasil, nova terra arrasada, onde a regulação em nível federal para as polícias militares, já não dialoga com o cenário contemporâneo brasileiro.
Em síntese, nas relações pessoais e comunitárias construídas nessas interações mais micro, o papel das polícias é combater o inimigo, o criminoso. Nas relações mais macro, como nas e entre as instituições, restam a carência de uma visão que possa se contrapor às construções endógenas que possam minimamente dizer, em lugar do que a polícia não deve fazer, mas o que ela deve fazer? O que se esperar dela?
A bem da verdade, o mundo não encontrou respostas definitivas para isso, pois, mesmo nos países em que o papel da polícia é mais clara e institucionalmente definido, como Estados Unidos e Reino Unido,
Há evidentes questionamentos sobre o espaço do fazer policial e suas noções de profissionalização. Essas definições variam grandemente em função de diferentes fatores históricos, políticos e sociais (Bayley, 2017).
Dessa forma, pode-se assistir a uma polícia voltada a garantir uma ordem política, como na Rússia e China, responsáveis diretamente para a manutenção de um establishment político (Light, Mota Prado e Wang, 2015), até corporações onde seus policiais ocupam-se, inclusive, de intervirem, ministrando certos tipos de drogas, para a redução de danos em caso de ingestão abusiva de drogas por parte de jovens em festas.
Mesmo a questão da destinação das polícias para enfrentamento do crime não é uma ideia homogênea nas corporações.
Pode-se mesmo afirmar que, mesmo no interior das polícias, existem dilemas entre uma destinação mais repressiva e outra em que compreende que seu papel alcança um leque maior de responsabilidades. Nessa disputa, as concepções de uma polícia essencialmente combativa têm se saído vitoriosas.
Assim, noções que integrem a polícia à redução de riscos ambientais que desfavoreçam a prática de crimes, como o acolhimento e empoderamento de populações sujeitas a maiores riscos de violência, ou fortalecimento de um capital social comunitário, que proporcione maiores condições para que carreiras criminais não prosperem, são exemplos de ações que sequer são cotejadas pelas políticas públicas e, quando o são, não enxergam nas polícias (por certo com a comemoração de grupos mais refratários a tais ideias) uma instituição capaz de contribuir com essa construção.
Em outras palavras, para a sociedade, para a política e para a polícia, em suas maiores partes, cabe às polícias combater criminosos, “mesmo com o sacrifício das próprias vidas”, colecionando mortos de lado a lado. Louvem-se iniciativas como a rede de proteção social intitulada Órion, implementada na região de Presidente Prudente/SP, na qual na qual um grupo de profissionais, de diferentes instituições públicas e privadas, é acionada tendo por entrada os acionamentos à Polícia Militar.
Mesmo existindo iniciativas de ações mais qualificadas pelo Brasil no enfrentamento à violência, elas restringem-se a questões locais e não alcançam as metrópoles, tampouco o core das instituições. Assim, o Brasil não foi capaz de estabelecer condições mínimas que proporcionassem novos parâmetros do que seja uma polícia profissional. Nesse vácuo, as próprias polícias, senão determinados grupos dentro dela, seguem organizando o meio-campo
Se suas propostas padecem de anacronismo, resultado de seu insulamento e do alcance de uma legitimidade perversa, que aplaude ações mano dura, também é decorrente de um espaço pouco qualificado que a sociedade lhes atribui. Por mais que se se possa criticar, é em suas condições materiais que constroem seus próprios fazeres, à falta de quaisquer outros que possam imprimir novos rumos a ela.
(*) Alan Fernandes - Tenente-Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Comandante do 21º Batalhão Metropolitano (Mooca/Vila Prudente), Doutorando em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas e Associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.