No domingo de sol da semana passada, um decreto vigente garantia comércios fechados e poucas pessoas circulando nas ruas e nos pontos turísticos da cidade de Salvador, Bahia. No mesmo dia, a 250 km da capital, um agente da Polícia Militar da Bahia chega à sua unidade de trabalho, devidamente fardado, e faz a carga do seu armamento para cumprir seu serviço do dia. O soldado, desviando completamente de sua rotina de trabalho e munido com um fuzil e uma pistola, entra em seu carro particular e dirige do sul da Bahia para Salvador. Foi até o Farol da Barra, um dos pontos turísticos mais importantes da cidade, e lá protagonizou cenas de violência, aos olhos assustados de transeuntes, moradores locais e de outros policiais.
Durante quatro horas da tarde de domingo, com fuzil nas mãos e com o rosto pintado com tinta verde amarela, gritava palavras de ordem, intercalando com tiros de fuzil pro alto. A compreensão geral do caso era de que se tratava de um “soldado em surto psicótico”. Além de gritar, jogou objetos de vendedores locais no mar e realizou gestos agressivos contra viaturas da polícia, que se aproximavam do local. Em um determinado momento, e em direção à equipe do BOPE que negociava a rendição, um tiro de fuzil é realizado pelo policial em surto. O tiro marca o início de uma série de disparos e gritos, dentro os quais: “Mataram ele! Executaram ele! Covardes!”. Os policiais se dividem entre aqueles que levam a mão à cabeça e os que desesperados chamam a ambulância.
Do hospital, vem a notícia de que o policial ferido está vivo, porém em estado grave. Do lado de fora, policiais se reúnem em oração pela vida do colega baleado. No mesmo instante, dois deputados estaduais, ambos oriundos da PMBA, interpretam o ocorrido como um ataque à polícia e com essa narrativa mobilizam os policiais a reivindicarem seus direitos, inclusive de greve. Numa catarse de reivindicações ecoa “Ôoooo a PM Paroô”, um coro que vai ficando mais intenso com a confirmação da morte do policial.
Diante desses eventos, tão significativos para pensarmos as relações atuais entre polícia, política e violência, propomos um olhar fragmentado sobre a morte do policial. Observando de diferentes perspectivas, identificamos os diferentes sentidos que essa morte mobilizou. Na primeira perspectiva, vamos observar essa morte no contexto das ações policiais em geral. Numa segunda, vamos observar a transformação dessa morte específica em pauta política e, finalmente, a percepção da morte como resultado de um estado de sofrimento mental e psíquico.
Mortes como resultado de operações policiais são eventos comuns no Brasil, fenômeno cotidiano de algumas áreas dos grandes centros urbanos do país. A grande maioria dessas mortes são “absorvidas” pela própria instituição policial e pela justiça criminal, sendo descritas como mortes intencionais legalmente (e moralmente) justificáveis. Existe uma série de questionamentos importantes a esse padrão de atuação, inclusive pela própria polícia. Mas, de maneira geral, podemos dizer que a atuação (letal) permanece nas práticas e mentalidades das polícias militares brasileiras, de forma a criar um efeito de normalização da produção de mortes.
No entanto, a morte do policial no domingo saiu completamente do roteiro dos casos de letalidade em Salvador, que normalmente ocorrem em bairros periféricos (e não na Barra), em regiões conhecidas como área de “tráfico de drogas”, (e não num importante ponto turístico da cidade), contra suspeitos de crimes (e não contra policiais militares). Policial militar matar outro policial militar, em nome da segurança local, é uma situação completamente excepcional e produz a mobilização imediata de símbolos e moralidades. Do ponto de vista institucional é uma ação difícil de ser digerida e por isso mesmo rapidamente interpretada por alguns como profundamente desonrosa. Afinal, se o protocolo diz para negociar durante horas com o “bandido”, por que atirar justo no policial “em surto”?
A transformação desta morte em fato político ilustra os paradoxos da democracia e das expressões do autoritarismo no Brasil. A versão do fato de alguns parlamentares e associações de policiais militares qualificou o ato individual do militar como expressão de resistência e de insatisfação social às medidas restritivas adotadas pelo governador da Bahia, em resposta à emergência sanitária atual. O questionamento da técnica policial e protocolos utilizados apoiaram a tese da execução. Como possíveis reações políticas ao evento, e em nome de valores como “coragem” e “honra”, falou-se em sublevação das tropas, por meio de paralisação dos serviços, responsabilização do governador pela morte do policial e substituição dos comandos das polícias. Os usos políticos da morte do policial militar para justificar uma reação política ilegal, como o motim, extrapolaram a esfera estadual, aparecendo em discursos de deputados federais aliados ao governo. A politização do caso desencadeou manifestações por todo o país em apoio ao governador da Bahia, às regras democráticas e à contenção da violência.
Na terceira perspectiva, vamos observar a morte como a manifestação de um estado de saúde mental. A morte violenta é poucas vezes pensada sob essa perspectiva, mas esse caso nos obriga a explicitar essa dimensão. Os profissionais de segurança que estão nas ruas vivem constantemente sob muita tensão e diariamente expostos a um alto grau de violência, muitas vezes com efeitos físicos e psíquicos importantes e duradouros. Essas condições, no entanto, não despertam a atenção necessária e como consequência a corporação “adoece”. Há muitos trabalhos científicos que chamam atenção para transtornos psicológicos e dependência de drogas nas polícias, assim como para o número expressivo de suicídios consumados e tentados pelos agentes. O Departamento de Promoção Social da PMBA, por exemplo, responsável pelo cuidado e acompanhamento social, psicológico e jurídico dos policiais, é um órgão importantíssimo, mas que não consegue dar conta da demanda.
O que podemos aprender com esse evento multifacetado, tendo em vista o aperfeiçoamento do jogo democrático e o desafio de promover ordem e segurança dentro do estado de direito? Entre muitas lições, esse episódio deixa claro como precisamos reorganizar a gestão da morte no país e repactuar os limites legais, institucionais e morais para o uso da morte violenta como resposta válida. De outro lado, também precisamos reintegrar na discussão os limites admissíveis de sofrimento (psíquico, mental ou físico) dos profissionais de segurança.
Mariana Thorstensen Possas - Professora do Departamento de Sociologia da UFBA, pesquisadora do Laboratório de estudos sobre crime e sociedade da UFBA.
Andrija de Oliveira Almeida - Doutoranda do PPGCS/UFBA e pesquisadora do LASSOS/UFBA.
Taiala Águilan - Mestrando do PPGCS/UFBA e pesquisadora do LASSOS/UFBA.
Fonte: fontesegura.org.br