Na mais difícil das eleições presidenciais desde a redemocratização, o presidente Lula foi eleito para seu terceiro mandato com uma pequena margem de votos, mas com uma enorme esperança de seus eleitores e eleitoras de que o país retomasse o caminho da democracia, da justiça social, da preservação ambiental e da defesa intransigente dos direitos humanos, num esforço coletivo e grandioso de afastar o fantasma da tirania e a ode à ignorância que tomou conta de boa parte da população brasileira.
Se não logrou satisfazer quem, de fato, se posiciona no campo de esquerda da política nacional, a nomeação de seu ministério ao menos trouxe alento pelo ganho de representatividade e pela perspectiva de vermos serem retomados os caminhos para avançarmos naqueles anseios da população que o elegeu. Por sabermos da importância de uma ampla coalizão política para enfrentar os tempos atuais, termos no primeiro escalão nomes como Silvio Almeida, Sônia Guajajara, Anielle Franco, Nísia Trindade, e outros/as, nos permitiu visualizar contrapesos à presença de alguns nomes destoantes.
Ocorre que enquanto muitos contemplam os embates entre uma política de “esquerda” ou outra de “direita” nos campos da economia ou dos costumes, nós nos debruçamos para olhar em direção a algo em que, historicamente, pouca diferença se percebe entre os governos do PT e de outras agremiações partidárias. Estamos falando do campo das políticas penais, algo que pode ressoar desconhecido para boa parte da população, mas que afeta, diretamente, mais de um milhão de famílias com membros alcançados pelo sistema de justiça criminal. E, neste tema, as notícias são pouco animadoras!
O susto começou ainda em dezembro, quando, surpreendentemente, vimos o futuro ministro da Justiça anunciar como o primeiro Secretário Nacional de Políticas Penais um nome que caberia muito bem no famigerado desgoverno Bolsonaro: um coronel paulista que participara de um dos mais violentos episódios do sistema prisional brasileiro, o Massacre do Carandiru. Naquele momento já se evidenciava que as “políticas penais” continuariam a ser compreendidas por uma única – e mais perversa – faceta: o encarceramento. Assim, embora pudesse significar um avanço termos a SENAPPEN – Secretaria Nacional de Políticas Penais – em substituição ao antigo Departamento Penitenciário Nacional, cujo foco era a política penitenciária, a indicação daquele coronel, sua queda e posterior substituição por um policial penal desconhecido no cenário nacional já sinalizava que o PT – e seus apoiadores – pouco aprenderam com o fato de terem promovido um dos maiores períodos de encarceramento do país.
Mas os indícios não param por aí: além da permanência de vários quadros do Depen bolsonarista na diretoria da nova Secretaria, as agendas até então cumpridas por parte desses dirigentes e as notícias publicadas na imprensa não deixam dúvida de que os caminhos sendo percorridos não sofreram mudança de rota. Foi assim que ficamos sabendo que a primeira missão oficial do novo secretário foi visitar unidades prisionais da Bahia para cumprir uma agenda de “inteligência prisional”, cujo conceito, na antiga e atual gestão, se resume a “enfrentar o crime organizado”. Dias depois a estética da repressão se repetiu: numa sorridente foto publicada em redes sociais oficiais, os diretores da SENAPPEN passeavam emproadamente por presídios pernambucanos nacionalmente reconhecidos pelas violações de direitos que promovem, cujo caso mais exemplar é o Complexo do Curado, onde as situações de tortura e maus tratos permanentes renderam ao Brasil uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Mais recentemente, o Diário Oficial da União publicou mensagem direta para a “tropa”, deixando transparecer que o regime de exceção, o modelo de segurança máxima, a lógica policialesca e intervencionista fortalecida no governo anterior não sofrerão abalos. A Portaria MJSP nº 298, de 2 de fevereiro, decide “autorizar, excepcionalmente, o emprego da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária – FTIP, em caráter episódico e planejado, para treinamento e sobreaviso, tendo em vista a situação carcerária dos Estados Federados, por 180 (cento e oitenta) dias”. Uma autorização de longa duração para uma modalidade incerta de “sobreaviso”, com uma menção enigmática sobre a situação carcerária e para um número desconhecido de servidores, cujos critérios de seleção são aleatórios.
Será disso mesmo que o sistema prisional precisa neste momento? Foram apurados e sanados todos os problemas anteriores identificados pelos órgãos de controle na FTIP? Os volumosos recursos pagos em diárias a servidores da SENAPPEN e dos estados nas operações realizadas nas unidades da federação e a servidores dos estados na sede da SENAPPEN trouxeram o retorno social e a mudança no sistema prisional pretendidos? Estão em pé de igualdade a quantidade de servidores e recursos aplicados nas prisões com os demais serviços penais de porta de entrada e saída do sistema penal? Essas perguntas não parecem ter sido feitas pela alta cúpula do governo.
Complementando o cenário, o noticiário destacou também a ocorrência de encontros do ministro da Justiça e do vice-presidente da República com representações e sindicatos de policiais penais, falando em unificação da segurança pública, sem distinção às especificidades das políticas penais, ignorando a noção interdisciplinar dos serviços penais, a necessidade de mudança de lógica da militarização da polícia penal e da custódia prisional, numa clara demonstração de que as políticas penais continuarão a ser planejadas e executadas privilegiando o viés repressivo do encarceramento.
Mas seria possível outro caminho? Sabemos que sim! Ao longo de quarenta dias um Subgrupo de Trabalho de Execução Penal e Funpen, designado no escopo da área de Justiça e Segurança Pública do Governo de Transição, debruçou-se sobre normativas, documentos de referências, experiências nacionais e internacionais, diálogos com servidores penais, pessoas egressas do sistema prisional, familiares de pessoas em privação de liberdade, pesquisadores e profissionais das mais variadas áreas para produzir um relatório que, ao longo de quase 200 páginas, apresentava ao governo eleito uma nova proposta de como assegurar os direitos humanos e enfrentar o encarceramento massivo como estratégia de promoção da paz e da justiça. As propostas partiam do pressuposto de que a prisão é a última e menos efetiva medida para enfrentamento à violência, devendo ser compreendida no bojo de um conjunto mais amplo de medidas de responsabilização penal – as políticas penais – para as quais devem ser previstos serviços penais e carreiras específicas, em diálogo permanente com a segurança pública, com os direitos fundamentais e com as políticas sociais.
Além de um diagnóstico cuidadoso do cenário encontrado nessa área, foram apresentadas propostas para reformulação dos mecanismos de financiamento destas políticas, para aperfeiçoamento do papel do Depen e de suas estratégias de atuação interfederativas, para regulamentação das carreiras de servidores penais – que não se resumem nem devem se subordinar às polícias penais; para integração, com autonomia, no Sistema Único de Segurança Pública; para fortalecimento das alternativas penais e institucionalização de uma política de atenção às pessoas egressas do sistema prisional e, sobretudo, para substituição de um modelo punitivista e contraproducente de expansão do aparato prisional.
Está em tempo de o governo atentar para essa complexidade, considerando o trabalho do grupo de transição, das organizações sociais que historicamente atuam na área, das universidades que produzem conhecimento sobre o assunto e outros segmentos. Para a sociedade civil organizada e para os movimentos de familiares e sobreviventes do sistema penal é fundamental que sigam atuando na explicitação dessas contradições, e é chegada a hora de reivindicar a sua agenda com o ministro da Justiça e com o vice-presidente da República para que as vozes populares sejam consideradas, pois, do contrário, teremos a manutenção da perspectiva que há décadas domina as políticas penais no Brasil, com incrementos corporativistas e repressivos dos últimos anos. Nessa área, ao que parece, o bolsonarismo ainda governa.
BRUNO ROTTA ALMEIDA* - Professor da UFPel
CAMILA NUNES DIAS* - Professora da UFABC
FABRÍCIO SILVA BRITO* - Defensor Público do Estado do Tocantins
GREGÓRIO ANTÔNIO FERNANDES DE ANDRADE* - Advogado
- Ex-integrantes do GT Execução Penal e FUNPEN, instituído no âmbito do Governo de Transição para o terceiro mandato do Presidente Lula.