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REALIDADES SILENCIADAS:

O desafio cotidiano de trabalho das mulheres policiais em dois fatores.

18/03/2023 às 09h44 Atualizada em 18/03/2023 às 09h49
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br
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REALIDADES SILENCIADAS:

As instituições policiais constituem estruturas majoritariamente compostas por homens. No Brasil, as mulheres representam menos de 15% dos profissionais da categoria e enfrentam desafios associados a distintos aspectos, dentre os quais, como base, destaco os fatores biológico e o histórico-cultural, que, embora sejam realidades, são pouco discutidos.

Na condição de mulher e de profissional do campo da segurança pública há mais de uma década, discorro sobre aspectos do cotidiano das mulheres policiais diante de um universo predominantemente masculino. O que, por assim ser, estabelece importante influência sobre o que se estuda, produz ou difunde sobre o assunto, tendo como seus principais interlocutores os homens. Dificilmente são encontrados registros produzidos por mulheres policiais sobre sua própria experiência com o trabalho profissional ou sobre seus pares. Em regra, as (os) policiais são alvo dos estudos, e não os estudiosos do ambiente em que estão inseridos.

Pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas – NEOP, vinculado à Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, expôs o retrato das “Mulheres nas instituições policiais” como resultado da compilação de questionários eletrônicos respondidos por profissionais da área. A ampla pesquisa, publicada em 2015, demonstra os desafios associados às relações de gênero nas instituições, refletidos nas percepções dos respondentes. Como exemplo, no módulo sobre discriminação e violência de gênero, 55,2% das mulheres consideram as piadas ou comentários sobre sua aparência física, orientação afetivo-sexual ou capacidade cognitiva como formas de violência de gênero – afirmação da qual 51,6% dos homens discordam.

Dialogando sobre esses resultados, um colega direcionou a mim a seguinte questão: “por que ainda não conseguimos enxergar as diferenças da policial feminina nas modalidades de trabalho da instituição? Vocês [mulheres] precisam fazer alguma coisa”, disse ele.

Por esse viés, o desafio que se apresenta bastante vívido é de enfatizar nos espaços ocupacionais, majoritariamente compostos por homens, que as mulheres precisam de tratamento diferenciado pela condição de mulheres, sem que sejam apontadas como profissionais de menor valor porque possuem ressalvas para o trabalho que se dispuseram a desempenhar. Em virtude das respostas simbólicas que se tem no campo institucional masculinizado, as mulheres se retraem, evitando expor suas demandas para que não haja desgaste nas suas relações laborais. São situações, normalmente, não documentadas ou alvo de estudo, que seguirão no campo da invisibilidade até que se tornem incômodas demais para que não se façam públicas. É o caso, por exemplo, do debate sobre o assédio sexual nas instituições policiais e, no mesmo sentido, o debate atual pela criminalização da misoginia.

A misoginia constitui uma realidade que transversaliza a vida das mulheres, especialmente na fase adulta. O ódio às mulheres se manifesta em posturas que seguem no esforço do apagamento e/ou diminuição da figura feminina.

Percebo dois fatores que marcam particularidades da mulher na segurança pública. Ambos seguem nos campos da invisibilidade ou da negação: 1) fator biológico; e 2) fator histórico-cultural.

Fator biológico

A diferença biológica entre homens e mulheres parece incontestável. A exigência das avaliações físicas para ingresso nas instituições associadas à segurança pública demonstra a legitimidade dessa condição. Nesse rumo, a maternidade parece questão superada, mas ainda é alvo de intenso debate. A consideração institucional dessas diferenças vem acontecendo em ritmo lento. Como exemplo, inclui-se a recorrente desconsideração da variabilidade dos períodos de lactação das mulheres que são submetidas ao cumprimento de diligências previamente estabelecidas com afastamento de casa por vários dias, sob o argumento de que a mulher que ingressa nas forças policiais precisa se adaptar à instituição e não o contrário. A Organização Mundial da Saúde recomenda o aleitamento materno até os 2 anos da criança.  Outra particularidade comumente invisibilizada é o período menstrual, que, a depender da mulher, chega com desconforto/dores, que nem sempre são aliviadas com medicamentos. Além disso, o sangramento, a necessidade do uso de sanitários com mais frequência, as alterações de humor, sensibilidade e percepção. São questões condicionadas pelo biológico, inerentes à condição de sexo feminino.

Fator histórico-cultural

Nesse aspecto, destaco o quanto se faz relevante conhecer o contexto social, histórico e cultural do território em que as mulheres policiais estão desempenhando suas funções. Isso importa, porque dá pistas sobre como as pessoas do lugar se comportam diante de uma mulher como autoridade equiparada

à figura masculina de instituições historicamente ocupadas por homens. A reação popular depende do contexto em que as relações são estabelecidas. Há diferenças importantes entre o comportamento da população de grandes centros urbanos, como as capitais dos estados, e os municípios do interior.

Desde o lugar de onde falo, no nordeste de Minas Gerais, em pleno 2023, após mais de 40 anos da mulher na Polícia Militar, populares de pequenos municípios de predominância rural, ainda se surpreendem com a presença de mulheres na PM. E exatamente nesses locais é que as pioneiras têm mais dificuldade de impor sua autoridade policial, uma vez que nunca antes foram vistas como tal. Destaco aqui a dinâmica do machismo estrutural, que normatiza a forma com que são estabelecidas as relações sociais, sustentando as desigualdades históricas entre gêneros. Por habitar a base da sociedade, parece ser intrínseco a ela e não um mecanismo socialmente construído, cristalizado. Em razão disso, posturas machistas são adotadas tanto por homens quanto por mulheres. Nesse cenário, nas ruas, mulheres policiais são confrontadas por cidadãos comuns, que não enxergam a legitimidade de sua autoridade.

A dificuldade do homem em acatar as ordens de uma policial parece estar associada ao comportamento estabelecido por ele nas suas relações com outras mulheres, no primeiro plano, aquelas do seu âmbito familiar – mãe, irmã, companheira, filha. Essas relações são permeadas pela hierarquia de poder, na qual a figura masculina sobrepõe a figura feminina, que, embora resista, tende a validar esse movimento. Assim, a obediência a uma mulher investida de poder legitimado pelo Estado para submetê-lo a uma situação ocasional de vulnerabilidade parece uma afronta profunda para o homem que recebe a ordem.

A resistência masculina às ordens das policiais assume características diferentes da resistência que também se dá diante dos homens policiais. Enquanto os questionamentos feitos por um policial do gênero masculino são respondidos objetivamente por homens abordados ou sob custódia, no caso de questionamentos feitos por parte das mulheres policiais, a resistência tem sido: a) negativa de responder ao questionamento da policial; b) silenciar e responder apenas ao policial masculino; c) responder de forma ríspida ou com sarcasmo; d) resistir por mais tempo o acatamento da ordem se a ação estiver acontecendo na presença de outros homens; e e) afrontar diretamente a policial. Em todos os casos de resistência passiva, faz-se necessária a validação do policial masculino para que a ordem seja acatada.

Nesse bojo, há pontos comuns à realidade das mulheres que atuam no campo da segurança pública. Além dos desafios associados aos fatores biológico e histórico-cultural, identificam-se os perfis mais comuns de mulheres policiais: a) mulheres que buscam se adequar ao sistema, reproduzindo posturas discriminatórias quanto a outras mulheres; 

b) mulheres que, embora percebam a necessidade de mudanças frente à sua condição de mulher, tanto por parte do público interno quanto do externo, deixam de se posicionar por não terem uma figura feminina de referência ou por decidirem evitar o desgaste, uma vez que representam minoria absoluta nos seus espaços laborais; e 

c) mulheres que, tendo consciência da necessidade de avanços para as profissionais da categoria, provocam o debate.

Em linhas gerais, o enfrentamento dos desafios e o alcance da Igualdade de gênero, como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS 5 – ONU) – compromisso do Estado brasileiro –, demanda a desconstrução, no primeiro momento, do imaginário popular de que o campo da segurança pública não constitui lugar para mulheres.

JULIANA LEMES DA CRUZ - Doutoranda em Política Social pela UFF; Assistente Social de formação e Mestra em Saúde, Sociedade e Ambiente pela UFVJM; Membro do GEPAF/UFVJM; Coordenadora do Projeto Mulher Livre de Violência; Colaboradora do INBRADIM; Colunista do Jornal Diário Tribuna; Professora de Ensino Superior; Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, lotada em Teófilo Otoni e Conselheira do FBSP.

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