Em 03/01/2022, o jornal O Povo publicou uma matéria versando sobre o Portal Cearense 5.0. A iniciativa merece destaque, pois, com o mínimo de recursos, mapeou o domínio territorial exercido por facções criminosas no Ceará. O portal, a partir de dados coletados de forma colaborativa via rede sociais e aplicativos de mensagens, identificou o controle de facções em 1444 territórios do Estado. O mapeamento mostra que 705 localidades seriam controladas pelo Comando Vermelho (CV), 555 pela Guardiões do Estado (GDE); 102 estariam sob o Primeiro Comando da Capital (PCC).
De maneira geral, as facções narcotraficantes, assim como as milícias, para além do comércio de drogas, empreendem em seus territórios atividades como venda de gás de cozinha, oferta de internet, TV por assinatura, segurança comunitária e resolução de conflitos entre moradores.
Na prática, esses grupos atuam como estados paralelos, provendo serviços, atendendo demandas e regulando o ambiente econômico e social, seja nas atividades ilícitas, diretamente conectadas a seu autofinanciamento, sejam atividades próprias de Estado ou do mercado.
Conforme pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos — GENI, no Rio de Janeiro estima-se que as milícias controlam 25,5% dos bairros, perfazendo um total de 57,5% do território da cidade. Já as facções narcotraficantes comandam 34,2% dos bairros, e 15,4% do território.
Em termos de população, isso equivale a dizer que 3,7 milhões de pessoas no Rio estão sob a governança de estados paralelos. Em termos de Brasil, estudo em andamento, liderado por pesquisadores da Universidade de Chicago, estima que mais de 10 milhões de pessoas vivem sob governança criminosa.
Pesquisas empíricas demonstram que, em média, pessoas que vivem sob o mando de grupos criminosos são menos escolarizadas e mais pobres do que as que moram a um raio de apenas 50 metros de distância além da fronteira do território ocupado.
Os mecanismos pelos quais o controle de áreas por grupos criminosos induz à pobreza são variados. De forma direta, esses grupos restringem a liberdade de circulação dos moradores, diminuindo a probabilidade de estes acessarem oportunidades de trabalho em empresas maiores e, consequentemente, melhores salários.
Outro canal indutor de pobreza nessas áreas é o impacto da violência no potencial educacional dos moradores. Em pesquisa inédita, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania estimou que crianças matriculadas em escolas com entorno violento (áreas que sofreram 6 ou mais operações policiais) perderam 64% de aprendizagem em português, e 80% em matemática no Rio de Janeiro.
Para além disso, a professora Maria Sviatschi, da Universidade de Princeton, demonstrou que o crescimento do narcotráfico no Peru elevou o uso de crianças no plantio de coca. Como consequência, quando se tornam adultas, a probabilidade de essas crianças se envolverem em crimes violentos cresceu 30% . Em outras palavras, o estudo indica que a exposição de crianças a atividades ilegais as conduz para o crime.
O cenário de destruição de oportunidades é acentuado pelo instável ambiente macroeconômico brasileiro. Como mostra estudo do professor Bell, do Kings College, a partir de dados dos Estados Unidos e Reino Unido, recessões econômicas conduzem jovens adultos ao crime, uma vez que alto desemprego reduz o retorno esperado do trabalho lícito, ao passo que eleva o do crime.
Na mesma linha, pesquisa liderada pelo economista brasileiro, Breno Sampaio, da UFPE, demonstrou que a perda de emprego eleva em 23% a probabilidade de o indivíduo praticar crimes. Por outro lado, o acesso ao seguro-desemprego compensa o efeito pró-crime do desemprego ao menos durante o período de vigência do benefício.
Em síntese, a literatura aponta que o domínio de áreas por grupos criminosos, associado à inconstância do ambiente macroeconômico, conduz à pobreza via limitação de oportunidades para os adultos e se perpetua limitando as possibilidades de desenvolvimento das crianças, ou as desvirtuando para o crime.
Infelizmente, não há um curso claro de ação para o enfrentamento da governança criminosa. A visão comum que preconiza a ausência do estado como causa do domínio criminoso não encontra amparo na evidência recente que sinaliza que a elevação da presença do Estado causa, na verdade, intensificação da governança criminosa.
A intensificação na provisão de serviços por grupos criminosos seria uma resposta estratégica à elevação da presença do estado, o efeito é mais forte nas regiões onde as rendas do crime são maiores. O objetivo seria fortalecer a lealdade dos moradores e evitar incursões policiais, resguardando a fonte principal de renda, o comércio de drogas.
Apesar desse resultado, a literatura mantém o argumento pró-elevação da presença e a eficácia do Estado em áreas controladas por criminosos. Pois isso seria apreciado pelos cidadãos, e também incentiva as facções a restringirem ações violentas. Para além da presença estatal, a adoção de políticas que fomentem mudança de normas que governam a relação dos cidadãos com os grupos criminosos, no médio ou longo prazo, podem enfraquecer os estados paralelos.
PEDRO FERNANDES - Mestre em Economia e Especialista em Desenho, Avaliação e Implementação de Políticas Públicas.
MARCELO DAVI - Professor e Doutor em Economia pela UFC e Pesquisador na área Economia do crime e Monitoramento e Avaliação em Governança e Políticas Públicas.