Uma das primeiras e mais importantes reflexões sobre qualquer profissão, na atualidade, diz respeito a seu grau de especialização. Há razões que nos levam a crer que, quanto mais especializadas uma área de conhecimento e atuação profissional, mais seus profissionais encontram algum grau de apoio público, reconhecimento e respaldo para atuarem. Buscamos, por exemplo, se sentimos urticária, inicialmente um dermatologista; se precisamos consertar um computador, recorremos a um técnico especializado em reparos de computadores; se queremos nos divorciar, buscamos um advogado especializado em divórcios etc. A modernidade estabeleceu-se na premissa de especialização do conhecimento, legitimando diversos tipos de atores em processos de solidariedade e coesão social.
Não é diferente com a segurança pública. Atualmente, para citarmos alguns exemplos, existem grupos especializados para combate ao crime organizado (nos aspectos investigativos, no âmbito das polícias judiciárias estaduais e Federal), batalhões específicos da PM voltados para repressão a crimes de violência contra as mulheres, ou mesmo o policiamento nas rodovias federais, que foi concebido por meio de uma carreira específica para esse fim.
Embora segurança pública encontre esteio em uma série de atividades muito além das de natureza policial – como aquelas relacionadas aos processos de prevenção primária, que visa promover direitos, inclusão social, mediante oferta de acessos sociais diversos que evitem a decisão pelo desvio – nosso modelo de profissionalização sistêmica desse campo centraliza-se nas polícias, no que se refere à operacionalização – e não à estratégia – do Sistema Único de Segurança Pública, previsto no art. 9º, § 2º, da Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018.
Usando-se dessa noção, mas com a real motivação de valorização dos ex-agentes penitenciários, em 2019, foi incluída uma nova categoria no art. 144, VI, da Constituição: os policiais penais. O contexto das atividades desses profissionais está adstrito aos objetivos da Lei de Execução Penal, “a reintegração social”. Inclusive, é possível afirmar que no ciclo do Sistema Penal, esse campo é o da Política Penal, do cumprimento das decisões judiciais no campo da punição – não das ações ostensivas, repressivas e de investigação da segurança pública, mesmo que o sistema prisional colabore para os objetivos da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, art. 6 º, da Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018.
Considerando essa problemática, embora as regulamentações dependam de regramentos estaduais, algumas diretrizes nacionais mínimas para a atuação desses profissionais, se por um lado são desejáveis – do ponto de vista das atitudes, competências e habilidades exigidas – por outro, também podem representar certos riscos, se não forem definidas a partir de um amplo processo de discussão e escrutínio públicos, mediante participação dos setores diversos que compreendem as atividades relacionadas à execução penal. Trata-se de desafios relacionados a atuações historicamente sedimentadas ou ainda em aberto, em disputa na conformação do papel desses profissionais.
Por quê? As atividades de custódia são apenas uma parte de um grande conjunto que forma o arco dos chamados serviços penais, hoje também estruturados, em nível nacional, no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública: a Secretaria Nacional de Serviços Penais – Senappen (outrora Depen). Muito além das rotinas de vigilância (em muralhas, torres e postos de entrada/saída), acompanhamento de retirada/reingresso em celas e vivências, acompanhamento em audiências judiciais, inspeções internas e pessoais) o policial penal constitui-se num elo essencial para a regularidade dos serviços prisionais e atuação das demais carreiras profissionais integrantes do sistema, garantindo o exercício de serviços assistenciais e direitos diversos (como saúde, educação, trabalho, assistência jurídica, rotina de visitantes) na prisão. Além deles, os serviços relacionados à custódia provisória e à vida pós-prisão (serviços de acompanhamento de medidas em meio aberto, por exemplo), podem estar ou não associados à atividade do policial penal.
Apesar de sua importância, é preciso também compreender os limites de atuação desses profissionais: daí a necessidade de definição de um mandato estatutário, que compreenda seu caráter operacional para o funcionamento dos serviços, sua natureza civil, sua distinção com relação às atividades desempenhadas pelas demais polícias (não lhes competindo exercer atividades investigativas ou de prevenção de crimes em ambiente externo à prisão), os limites para uso de armamento letal e menos letal, sua distinção em relação às competências, habilidades e atitudes dos múltiplos perfis profissionais que exercem a gestão estratégica dos serviços penais (a qual também pode ser desempenhada por esses profissionais, embora não exclusivamente por eles).
No processo de regulamentação de carreiras, outro risco importante refere-se à “captura” ou mimetismo em relação a outras carreiras: um policial penal no nível dos estados certamente lida com desafios e rotinas muito distintos daqueles que compreendem as atividades dos policiais penais federais. Estabelecer essas diferenças e considerar a diversidade dos tipos de estabelecimentos de custódia e serviços abrangidos é essencial nesse processo.
Nesse sentido, com vistas a contribuir para esse debate, o Laboratório de Gestão de Políticas Penais, em parceria com uma rede de signatários, elaborou recentemente o documento intitulado “Regulamentação da Polícia Penal – questões centrais para qualificar a discussão sobre a polícia penal e a Política Penal”. É um convite para a mobilização de toda a sociedade em torno de algo que a atinge diretamente.
JOÃO VITOR RODRIGUES LOUREIRO - Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Pesquisador vinculado ao Laboratório de Gestão de Políticas Penais da UnB – LabGEPEN/UnB.