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Segurança pública, insegurança jurídica e a ação da Polícia Federal

E aí entra um tema muito discutido atualmente, mais pelos reflexos econômicos que dele decorrem do que por preocupações com a segurança pública. Refiro-me à segurança jurídica.

10/04/2023 às 09h33
Por: Carlos Nascimento Fonte: conjur.com.br
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Segurança pública, insegurança jurídica e a ação da Polícia Federal

Revela-se cada dia mais comum a instabilidade e imprevisibilidade das relações jurídicas, a definição do papel dos órgãos públicos e a eficiência dos seus serviços, algo que o artigo 37 da Constituição impõe, regra geral, sem sucesso.

Se entre os serviços públicos em geral são múltiplas as dificuldades — e da mesma forma os fatos que as originam —, na segurança pública elas se elevam em grau máximo. É que os órgãos que a compõem enfrentam um número gigantesco de desafios diários e, os que deles participam, riscos que podem vir de qualquer lado e em qualquer momento, tal como bombas em zona de guerra.

Mas serão estes riscos uma figura retórica, uma afirmação abstrata para dar suporte a uma opinião? Não, na verdade são, realmente, situações de perigo concreto.

O risco à integridade física é o primeiro e varia conforme o local em que se exerce a função. Será maior na região metropolitana do Rio de Janeiro do que em uma pequena cidade mineira perdida entre montanhas. Mas existe. Na Baixada Santista, em dezembro de 2021, dois policiais foram mortos e dois sofreram tentativa de homicídio em menos de 48 horas. [i] Reportagem de agosto de 2022 já registrava a existência de 13 vítimas policiais na região.[ii] Não se tem notícias de qualquer mobilização ou solidariedade da sociedade, tudo indicando que o choro ficou restrito a familiares e amigos próximos.

Porém os riscos não são apenas físicos. Podem ser também jurídicos. Afinal, a linha limítrofe entre o que pode e o que não pode não tem definição clara. Dependendo de quem venha a analisar o caso posteriormente, ela pode ser tida como uma das muitas espécies de abuso de autoridade previstas na Lei 13.869/2019. Daí para amargar uma ação penal por anos a fio é um passo.

E aí entra um tema muito discutido atualmente, mais pelos reflexos econômicos que dele decorrem do que por preocupações com a segurança pública. Refiro-me à segurança jurídica.

Para José Afonso da Silva, a segurança jurídica é o “conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida”. [iii] Celso A. Bandeira de Mello afirma que este princípio, muito embora não previsto em artigo específico da Constituição, é “da essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo". [iv]

Ocorre que a segurança jurídica vem perdendo espaço a cada dia para princípios de toda ordem que surgem, por vezes, sem que se saiba de onde, quando, de quem e por quê. Humberto Ávila, em obra consagrada sobre o tema, oferece critério seguro de sua aplicação. [v] Mas, no mais das vezes, suas observações não são seguidas e a aplicação se resume a uma mera referência, tal qual um verdadeiro dogma de fé, verdade indiscutível.

O resultado disso pode ser a simples demonstração inequívoca a um policial de que foi uma tolice arriscar-se ao abordar um suspeito na rua até a constatação de que meses ou anos de leitura de mensagens em celulares, pesquisas em conversas em telefones fixos ou móveis, bem como outras pesquisas complexas foram inúteis. Processo nulo por isto ou por aquilo e ponto final.

Ainda há outra espécie de insegurança que vem crescendo permanentemente. Trata-se das atribuições de órgãos públicos, o que cabe e o que não cabe a cada um. Avanços na competência alheia vão se sucedendo, criando dificuldades no alcance de dispositivos constitucionais que definiram o papel de cada um.

A invasão de competências é um discreto e sinuoso inimigo da democracia. Regra geral, colhe o cidadão despreparado para enfrentá-la, surpreso diante de uma ordem oriunda de uma autoridade que não tem entre as suas atribuições a correspondente à ação ou abstenção determinadas. Obriga-o a defender-se e, consequentemente, a ter despesas. Vejamos.

A Defensoria Pública, que tem por missão a defesa dos interesses dos carentes, recentemente conseguiu incluir no artigo 45 da Lei Complementar 65/2003, do estado de Minas Gerais, poderes para requisitar inquérito policial. Por óbvio, tal iniciativa, que significa ordem e não requerimento, cabe ao Ministério Público e não à Defensoria, cuja missão é diversa. O STF decidiu pela inconstitucionalidade do dispositivo, colocando as coisas nos devidos lugares. [vi]

As atribuições da Polícia Rodoviária Federal estão na Constituição, artigo 144, parágrafo 2º: “(...) destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. Ocorre que, face à importância das rodovias na prática de crimes que vão muito além de infrações de trânsito (v.g., tráfico de entorpecentes), aos poucos ela foi substituindo a patrulha das rodovias pela investigação de crimes, o que a Constituição não lhe atribui. Os limites seguem nebulosos, muito embora o STF tenha validado decreto que permite à Polícia Rodoviária Federal a elaboração de termo circunstanciado em crimes de menor potencial ofensivo.[vii] Os demais aspectos seguem indefinidos, criando flagrante insegurança jurídica.

Outras situações mereceriam análise, porém extravasariam o tema desta coluna. Por exemplo, pode o Tribunal de Contas da União determinar ao ex-presidente da República a entrega de presentes à Caixa Econômica Federal? Não se discute o mérito da ordem, mas sim o alcance do artigo 71 da Constituição. Dispositivos genéricos nos incisos dão ao TCU o direito de invadir função típica do Poder Judiciário? Qual o alcance das recomendações do MP, previstas no artigo 6º, inciso XX, da Lei Complementar 75/1993? Elas são importantes, mas não podem extrapolar os limites, sob pena de invalidade. [viii]

Pois bem, expostos os dois primeiros itens da coluna, vejamos o terceiro, ou seja, a Polícia Federal.

No Brasil, as organizações criminosas vêm crescendo de forma significativa, movimentam milhões de dólares e constituem entidades paralelas ao Estado, diga-se de passagem, bem mais organizadas. No recente cerco ao estado do Rio Grande do Norte, propriedades particulares e prédios públicos foram atacados, criando um clima de medo na população. Poucos dias depois, veio a público a descoberta de um plano para matar o ex-juiz federal Sergio Moro. Tudo isto deixa claro o enfraquecimento do Estado.

E paradoxalmente, enquanto o Estado mais se debilita, mais decisões judiciais anulam processos por "fás" ou por "nefas", ou seja, com ou sem razão, e o Poder Legislativo brinda-nos com mais uma pérola, aprovando a Câmara dos Deputados projeto de lei que determina a absolvição do acusado quando houver empate nos julgamentos, mesmo se a composição do tribunal não estiver completa, como em caso de ausência ou suspeição de um juiz. [ix]

Em meio a este estado de coisas, segue a Polícia Federal seu curso, conseguindo manter o respeito e a credibilidade dos brasileiros. Seus membros, não apenas os delegados de Polícia, aperfeiçoam-se nas técnicas de investigação e no Direito, de forma genérica. Não raramente participam de cursos no exterior, aprimorando seus conhecimentos. Raras são as notícias de corrupção ou outras práticas criminosas, muito embora seja absolutamente normal que ocorram, desde que em percentual mínimo.

Em suma, a administração consegue ser exercida com autoridade e disciplina, em um país em que a cúpula das instituições perde o controle de seus membros.

E mais, em que pese estar a Polícia Federal subordinada ao Poder Executivo e, consequentemente, sujeita às suas influências, ela vem conseguindo manter um elevado grau de independência, como deu mostras no governo passado e no atual. Isto ficou bem claro nas investigações do plano de morte do hoje senador Sergio Moro.

Isto não significa nenhum demérito para as Polícias Civis, que lutam em outro plano e com dificuldades maiores. Significa, isto sim, que estas devem mirar-se nas conquistas daquela e procurar iguais vitórias.

Assim dizendo, registro aqui o reconhecimento que não deve esperar o aniversário do órgão, mas sim ser dado a qualquer momento, de modo a estimular aqueles que, apesar de tudo, se dispõem a lutar pelo bem comum.

[i] Globo.com, g1. Quatro policiais são vítimas de atentados em menos de 48 horas. Disponível no Link:

[ii] UOL. Josmar Jozino. Série de mortes assusta Baixada Santista; policial civil é a 13ª vítima... - Veja mais no Link.

[iii] SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 133.

[iv] Bandeira de Mello, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 127.

[v] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 17ª. ed. Salvador: JusPodium – Malheiros, 2022, p. 152-153.

[vi] STF, adi 3.446, Relator Min. Alexandre de Moraes, j. 10 mar. 2023.

[vii] STF, ADI, processos 6.245 e 6.244, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 24 mar. 2023. Disponível no Link:

[viii] Hoje em dia. TJMG. Justiça suspende recomendação do MP e Polícia Militar poderá fiscalizar toque de recolher na RMBH. Disponível no Link

[ix] Globo.com, gi. Disponível no link: em:

Vladimir Passos de Freitas é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR, desembargador federal aposentado, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça, promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (IBRAJUS).

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