Fazer da escola um espaço de acolhimento e, a partir dela, diminuir a necessidade de as pessoas se identificarem com esses grupos radicais é talvez a tarefa mais desafiadora, mas a que, possivelmente, mais pode contribuir para uma solução estrutural para que novas tragédias como estas deixem de acontecer.
Quanta tristeza e angústia nos envolvem diante das tragédias ocorridas nas últimas semanas. Os falecimentos da professora Elisabete Tenreiro, na Escola Thomazia Montoro, em São Paulo, e das quatro crianças na creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau, geraram grande comoção na sociedade e nos levam a perguntar o que levou a essas tragédias.
A violência não é de hoje e não é só essa
O Brasil é uma sociedade violenta e essa violência se espelha também na escola. Dados de pesquisas do LEPES mostram que mais de 80% dos estudantes dos anos finais do ensino fundamental têm dificuldades de gerenciar sentimentos como ansiedade, raiva ou frustração frente a situações adversas. 56% dos estudantes já sofreram bullying, mais de 30% já se envolveram em brigas e impressionantes 46% já pensaram em se auto-lesionar.
A violência, em todas as suas formas, é um fenômeno complexo, multidimensional e que tem diversas causas. Não podemos, portanto, atribuir um comportamento ou evento violento a somente uma causa, embora o senso comum prefira explicações fáceis e simples. Além disso, até que um ato de violência extrema ocorra, muitos sinais podem ter sido negligenciados. Por exemplo, no caso do ataque à Escola Thomazia Montoro, será que o garoto sofria e cometia violências? A escola tinha um ambiente de escuta frente a eventuais frustrações muito comuns na adolescência? Havia outros sinais de um comportamento de risco do jovem?
A escola precisa assumir seus novos papéis
Com as transformações da nossa sociedade, a escola está sendo cada vez mais chamada a se reconfigurar e a assumir novos papéis. Com isso, muitos desafios estão colocados, pois professores, gestores e demais profissionais de ensino não tiveram formação para lidar com este novo cenário. Entre os muitos desafios da escola nesse processo estão o de escutar e acolher os estudantes e de se organizar como parte do território.
Escutar envolve criar um espaço seguro e empático, no qual o estudante pode ser quem ele é e ser acolhido em suas dúvidas, angústias e problemas. Os sofrimentos relatados pelos estudantes devem ser validados pelos profissionais da escola e o estudante deve sentir que a escola deseja que esse sofrimento seja minimizado.
Organizar-se como parte do território envolve mapear e contar com o apoio de profissionais de outros setores (saúde e a assistência social, por exemplo) e procurar trabalhar com estes de maneira planejada, intencional e colaborativa. Com isso, é mais fácil compor um olhar de cuidado integral às turmas e indivíduos.
Eu Posso te Ouvir
Mas como tornar a escola um espaço de escuta no qual o aluno pode materializar seus sentimentos em palavras, ao invés de ações prejudiciais a ele e ao seu entorno?.
Uma das chaves para um trabalho preventivo relacionado ao envolvimento com violência envolve criar um trabalho intersetorial efetivo e intencional. Certamente há diversos modelos de intervenção em âmbito escolar que promovem um ambiente de escuta, acolhedor e que contribui para a prevenção de diversas violências. Aqui, apresentamos um deles, que o LEPES vem estudando e ajudando a estruturar desde 2019. O programa Eu Posso te Ouvir atua de forma intersetorial para o cuidado aos adolescentes de 11 a 15 anos matriculados nos anos finais do ensino fundamental.
O objetivo inicial do programa é promover a saúde mental e melhores relações no ambiente escolar. Além disso, também há objetivos de prevenção e redução de violência. Isso ocorre por meio da execução de um plano de atividades construído de modo conjunto por profissionais da escola, da assistência social e da saúde. Também há momentos formativos e de aproximação desses profissionais, para o desenho de um plano de ação coerente, sólido e que atenda as necessidades da realidade local.
O programa parte das seguintes perspectivas centrais: valorização da vida de cada indivíduo e promoção da saúde, do bem-estar, da cultura do respeito mútuo, da equidade racial e de gênero e do protagonismo estudantil. Atualmente, o Eu Posso te Ouvir está sendo implantado em 5 municípios e 56 escolas. Após a análise de implementação e refinamento da intervenção que está sendo realizada desde 2020 (com apoio da B3 Social e da Fundação Lemann), deve ser realizada avaliação de impacto do programa em 2024.
A sociedade precisa olhar todo dia para violência escolar, não só depois das tragédias
O trabalho conjunto da escola e da família, contando com apoio da saúde e da assistência social, pode ser uma ferramenta poderosa de prevenção a violência e de proteção aos estudantes, além de construir um ambiente de acolhimento e respeito para além da escola. Além disso, a sociedade deve enxergar a violência escolar como um problema de primeira ordem, para que se consiga testar e disseminar programas preventivos que sejam eficazes na prevenção das diversas formas de violência.
O que fazer para evitar novos casos?
Soluções propostas de afogadilho logo após uma tragédia podem ser um tiro no pé, pois normalmente não foram construídas e avaliadas com a seriedade que o problema da violência exige, mas são fruto da necessidade de dar alguma resposta à comoção gerada na sociedade. Assim, não há evidência de que equipar as escolas com guardas armados, cerca elétrica e detector de metais contribua para a não ocorrência desses casos. O que a literatura aponta é que não se deve divulgar nada sobre os assassinos, especialmente nome e imagem, para evitar servir de troféu e causar efeito gatilho em outros potenciais perpetradores desse tipo de ato.
Monitoramento de grupos de ódio em redes sociais por parte do aparato de segurança pública pode ajudar também, mas não elimina totalmente os riscos de novos ataques. Fazer da escola um espaço de acolhimento e, a partir dela, diminuir a necessidade de as pessoas se identificarem com estes grupos radicais é talvez a tarefa mais desafiadora, mas a que, possivelmente, mais pode contribuir para uma solução estrutural para que novas tragédias como essas deixem de acontecer.
MAYRA ANTONELLI PONTI - Doutora no Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade de São Paulo FFCLRP – USP.
JULIA ELENA CÓRDOBA VIEIRA - Graduada em Ciências Econômicas pela USP e graduanda em Psicologia pela USP.
LUIZ GUILHERME SCORZAFAVE - Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (LEPES/USP) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.