A falta de tecnicidade com que a doutrina e a jurisprudência têm lidado com temas ligados à investigação criminal é alarmante. Utiliza-se de determinadas expressões, sem o correto entendimento do seu significado, apenas para justificar teses e decisões de caráter puramente corporativista ou utilitarista. Um dos principais erros cometidos pela doutrina e jurisprudência reside na diferenciação criada entre polícia judiciária e polícia investigativa, a qual tem sido utilizada para permitir que a polícia militar realize investigações, inclusive com o cumprimento de mandados de busca e apreensão.
Nesta linha, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o AgRg no Habeas Corpus nº 752.547-SC (2022/0198444-0), em 13 de setembro de 2022, decidiu que:
"PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. 1. MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO. CUMPRIMENTO PELA POLÍCIA MILITAR. POSSIBILIDADE. 2. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.1. Nos termos do art. 144 da Constituição Federal, à polícia federal e às polícias civis compete, com exclusividade, unicamente o exercício das funções de polícia judiciária, o que não se estende à atividade de polícia investigativa. Assim, embora não seja atividade típica da polícia militar, não consiste em ilegalidade — muito menos nulidade — eventual cumprimento de mandado de busca e apreensão pela instituição. Precedentes."
Notem que, apesar de o STJ decidir que as funções de polícia judiciária não se confundem com as funções de polícia investigativa, o tribunal não define o que seriam tais funções. Certamente não o faz, pois qualquer definição apresentada deixaria patente o erro da linha argumentativa que pretende separar os dois conceitos, que na verdade são indissociáveis.
Mesmo a doutrina que tenta dividir tais conceitos acaba por chegar inevitavelmente a definições conflitantes. Renato Brasileiro aponta que polícia investigativa seriam as atribuições ligadas à colheita de elementos de informação quanto autoria e materialidade, já a polícia judiciária seria a função de auxiliar o poder judiciário, cumprindo as ordens judiciais, como mandados de prisão, de busca e apreensão, etc [1]. Inicialmente, cabe notar que, mesmo essa diferenciação já não se coaduna com a decisão do STJ, já que traz a polícia judiciária como responsável pela execução de mandados de busca e apreensão, assim, se a Constituição deu com exclusividade às polícias civis e federal a função de polícia judiciária, não poderia a polícia militar dar cumprimento a mandado de busca e apreensão, como autorizado pelo STJ.
Indo além, a análise dos conceitos propostos por Brasileiro é suficiente para aferir que a divisão não se sustenta logicamente. As medidas tidas como "função de polícia judiciária" como execução de mandados de busca, prisão, implementação de interceptações telefônicas, etc., são medidas de investigação, as quais foram previstas em lei para serem utilizadas pela polícia judiciária, mediante representação do delegado de polícia. Neste sentido já fica evidente a falta de lógica em se separar polícia judiciária e investigação criminal.
A suposta separação entre função de polícia judiciária e investigação criminal tem por base uma análise apressada do artigo 144 da Constituição. O legislador constituinte, ao elencar as atribuições da Polícia Federal, alocou a apuração de infrações penais nos incisos I e II do §1º, enquanto que a função de polícia judiciária foi elencada no inciso IV deste mesmo parágrafo, sendo dada exclusividade à Polícia Federal apenas a função de polícia judiciária da União. De forma similar, o artigo 144, §4º da CF, ao elencar as atribuições da Polícia Civil, diz que cabe a estas a função de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. A conjunção "e" faz parecer que tais funções não se confundiriam.
Ocorre que, apesar da péssima técnica legislativa utilizada pelo legislador constitucional, a função da Polícia Judiciária é a função de investigação criminal. Negar tal fato é negar toda a história do que vem a ser Polícia Judiciária desde os seus primórdios. Por exemplo, os artigos 19 e 20 do Code des délits et des peines francês de 1795, o qual trouxe a separação entre Polícia Administrativa e Polícia Judiciária, previam que [2]:
"Art. 19: A polícia administrativa tem por objeto a manutenção habitual da ordem pública em cada local e em cada parte da administração geral. Seu objetivo principal é prevenir os delitos."
"Art. 20: A polícia judiciária investiga os delitos que a polícia administrativa não conseguiu impedir de cometer, reúne provas e entrega os autores aos tribunais encarregados de puni-los."
Ao analisar a norma francesa, resta claro que, historicamente, a polícia judiciária é a instituição que realiza a função de investigação criminal. De forma mais técnica, temos que "Polícia Judiciária" não é na verdade uma função, sendo na verdade a própria instituição. Assim, mais correto seria que a Constituição Federal dissesse que a Polícia Federal é a Polícia Judiciária da União e que exerce as funções de investigação criminal para apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei. De mesma forma, a Polícia Civil é a Polícia Judiciária dos estados e tem por função a investigação criminal.
Esta função de investigação criminal foi conferida historicamente às Polícias Judiciárias, como o nome sugere, pelo fato desta polícia atuar como órgão auxiliar do Poder Judiciário, produzindo provas que seriam levadas diante de um juiz em um processo criminal. Apesar de hoje a Polícia Judiciária não poder ser mais vista como mero órgão auxiliar do poder judiciário, exercendo na verdade função essencial à justiça, permanece essa atribuição de produção probatória através de um processo de investigação criminal, o qual será levado ao conhecimento do poder judiciário [3].
Tendo a clareza de que as polícias judiciárias são as instituições responsáveis pela investigação criminal, podemos perceber que tais instituições foram preparadas tecnicamente e legalmente para tanto pelo legislador constitucional e infraconstitucional, sendo que a investigação criminal feita por outras instituições acabam por ser ilegais, ineficazes e violadoras de direitos e garantias fundamentais.
A função de investigação criminal é das Polícias Judiciárias, como instituições vocacionadas historicamente e legalmente para exercerem tal função. A fictícia separação entre Polícia Judiciária e investigação criminal tem sido usada, sem qualquer exame do conteúdo de tais conceitos, pelo poder judiciário e por parte da doutrina brasileira, porém não se sustenta em face de qualquer análise que vá além da mera superficialidade dos argumentos apresentados.
Referências bibliográficas:
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único — 9ª ed. rev., ampl. e atual. — Salvador: Ed. JusPodvm, 2021
PEREIRA, Eliomar da Silva. Introdução ao Direito de Polícia Judiciária — Belo Horizonte: Fórum, 2019
[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único — 9ª ed. rev., ampl. e atual. — Salvador: Ed. JusPodvm, 2021
[2] PEREIRA, Eliomar da Silva. Introdução ao Direito de Polícia Judiciária — Belo Horizonte: Fórum, 2019
[3] PEREIRA, Eliomar da Silva. Introdução ao Direito de Polícia Judiciária — Belo Horizonte: Fórum, 2019
Lucas Ferreira Dutra é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo IBCCrim e pela Faculdade de Direito de Coimbra e Delegado de Polícia Federal.