O IPEA concluiu pesquisa em 2022 a um custo de R$ 2 milhões, que foi debatida entre pesquisadores. Governo diz que dados produzidos estão sendo analisados para subsidiar ações de órgãos do Executivo.
Criminalização da pobreza e pouca investigação no combate às drogas: veja conclusões de pesquisa engavetada pelo governo.
Ipea concluiu pesquisa em 2022 a um custo de R$ 2 milhões, que foi debatida entre pesquisadores. Governo diz que dados produzidos estão sendo analisados para subsidiar ações de órgãos do Executivo.
Ao analisar os casos que envolveram denúncias anônimas, por exemplo, os pesquisadores identificaram que, em 93% destes casos, as denúncias foram mencionadas apenas nos depoimentos dos policiais.
Isso significa que, para além do flagrante, não há qualquer detalhe do registro da denúncia em si (o número, o horário ou mesmo o teor do relato).
“Um ponto de atenção importante a ser considerado ao longo da apresentação dos resultados, nas diferentes fases do percurso processual, é referente à proporção em que os depoimentos dos agentes envolvidos nos flagrantes são tomados tacitamente como a expressão da 'verdade' ou como atestados inquestionáveis de culpa dos acusados”, conclui o documento.
A forma de lidar com as denúncias anônimas é mais um ponto afetado pela seletividade, na opinião da professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marilha Gabriela Garau.
Também convidada pelo Ipea para discutir os resultados, ela ressalta a diferença na conduta das forças policiais a depender da região em que as abordagens acontecem.
"Eles não vão atender uma denúncia anônima no Leblon. Vão entrar em uma casa, em um apartamento, em uma cobertura do Leblon pra atender uma denúncia anônima? Essas denúncias anônimas que nunca têm, né?", questiona ela.
Violações de domicílios
Outro ponto revelado pela pesquisa envolve as chamadas violações de domicílios.
Em quase metade dos processos analisados (49%), a polícia entrou na casa em que os suspeitos moravam ou estavam naquele momento. Em dois de cada três casos, no entanto, não há registro formal de que essa entrada foi autorizada.
Sem mandado judicial, a entrada só pode ocorrer em caso de flagrante. A pesquisa registrou, no entanto, casos em que o consentimento foi registrado pelo policial e negado posteriormente pelos moradores – ou casos em que o policial entrou mesmo registrando a negativa dos habitantes do local.
Essa entrada supostamente ilegal, no entanto, foi questionada pela defesa dos réus em apenas 12,9% dos casos. Na apresentação sobre o tema, os pesquisadores apontam que a violação de domicílio, que deveria ser uma exceção, se tornou uma "regra de política criminal" no Brasil.
Pesquisa mostra que 63% das abordagens policiais feitas no Rio têm como alvo pessoas negras
“O Judiciário como um todo tem recebido essas notícias de violação de domicílio e nada tem feito”, diz Luciana Fernandes.
“A maioria das violações de domicílio, elas se dão depois de uma abordagem rotineira em domínio público, no meio da rua, quando nada é encontrado e depois o policial entra na casa da pessoa. Então para além de haver essa situação da violação de domicílio, a maioria dos casos de violação de domicílio se dão depois de uma abordagem policial em que nada é encontrado”, explica.
"Aí, fica a questão: uma pessoa foi abordada por um policial e decidiu de livre e espontânea vontade dizer 'então, você não quer passar na minha casa?'", questiona Luciana.
A professora lembra que entradas irregulares na residência dos réus seriam motivo, inclusive, para anulação dos casos na Justiça. Segundo Luciana, no entanto, o Judiciário mantém os casos em tramitação mesmo quando há divergências sobre a legalidade da conduta policial.
“Eu particularmente não vi nenhum caso de anulação de processo de violação de domicílio, pelo contrário. O que eu vi foram muitas denúncias, não só de entrada não consentida como de policias entrando em casas de pessoas e quebrando tudo, mas aí nada é feito”, diz ela.
Fluxo condenatório
A pesquisa identificou também que o percentual de condenação para crimes de tráfico de drogas fica acima dos 70% tanto em nível estadual (73,3%) como federal (74,7%), com penas-base acima do mínimo em ambos os casos.
Para os pesquisadores, há uma "faceta condenatória", com "centralidade da prova oral", que dá mais peso ao testemunho dos policiais no momento da avaliação por parte do juiz.
"Já na porta de entrada desses casos na Justiça, há uma tendência de que o fluxo resulte na condenação desse sujeito. Primeiro por ser oriundo de flagrante, e o flagrante acaba tendo mais força nos termos processuais. E depois, porque ele tem essa prova irrefutável que é a palavra do policial militar, que é um servidor público e tem fé pública", diz Marilha Garau.
Pesquisadora de sentenças em crimes de tráficos de drogas há 13 anos, ela diz que a pesquisa mostrou no resto do país o que já identificava em casos estudados no Rio de Janeiro.
"O que acontece é uma presunção de culpabilidade: os particulares precisam provar que eles não fizeram, e não o Estado provar que eles fizeram. É uma inversão de uma lógica mesmo", explica.
Ludmila Ribeiro contrapõe os dados de homicídios, crimes com índices historicamente baixos de resolução no país, aos resultados nos casos que envolvem tráfico – e enxerga nisso um autoritarismo.
"Há uma enorme validação de toda narrativa policial. Tudo que a política registra como tráfico não é questionado pelo promotor de Justiça, que poderia dizer 'isso não é tráfico, isso é uso, essa pessoa não vai entrar no sistema de justiça'. E depois isso não é questionado pelo juiz", exemplifica ela.
"É um sistema que não tem perdas, essas perdas que permitiriam à pessoa se defender. É um sistema de Justiça que nunca questiona o que a polícia faz, e aí você dá amplos poderes para a polícia para fazer o que quiser."
Posição do Ministério da Justiça
Em nota ao g1, o Ministério da Justiça informou que a pesquisa ainda não foi concluída e que apenas o relatório preliminar foi entregue.
"Dessa forma, as análises completas estão sendo finalizadas para que o estudo possa ser publicado e divulgado, com seus resultados debatidos de forma pública e ampla, reunindo setores do governo e da sociedade", acrescentou a pasta.
De acordo com o Ministério da Justiça, a primeira versão do relatório foi apresentada a pesquisadores e especialistas "com o objetivo de receber feedbacks, críticas e sugestões, e o documento para publicação está em processo de conclusão, mas nunca foi tratado como sigiloso".
"O viés racial do sistema de Justiça é um problema conhecido e a pesquisa fornece, entre outros, dados mais precisos sobre esse diagnóstico, tema da maior prioridade para o MJSP. Nesse sentido, todos os dados produzidos estão sendo analisados para subsidiar ações de órgãos do governo", informou.