CULTURA MEMÓRIA PARTE I
PARTE I: Belchior 71 anos de vida e poesia
Uma biografia do trovador: Por Camila Holanda, Isabel Costa e Marcos Sampaio
27/05/2023 20h55 Atualizada há 1 ano
Por: Carlos Nascimento Fonte: opovo.com.br/

Quando os ponteiros do relógio deste 26 de outubro marcarem 18 horas, Antonio Carlos Belchior completará 70 anos. Compositor cearense entre os mais notórios do cancioneiro popular brasileiro, Belchior conheceu a fama na década de 1970, quando morava no Rio de Janeiro e teve canções gravadas por Elis Regina, incluindo Como Nossos Pais. A carreira decolou como um foguete. Ele gravou discos, emplacou sucessos, colecionou namoradas e compôs hinos que atravessaram gerações.

Para comemorar as sete décadas do artista, nascido em Sobral, O POVO lança um projeto transmídia com caderno especial, hotsite e webdoc. A ideia é mostrar que o coração selvagem de Belchior ainda bate forte entre novos admiradores e fãs saudosos. Neste especial, estão histórias e curiosidades sobre a vida desse artista ímpar. São relatos do homem por trás do mito, da saudade do irmão, do amigo, do cantor nessa ausência autoimposta e, ainda, sobre seu trabalho mais marcante: Alucinação. 2016 celebra os 40 anos do álbum, lançado em 1976, um marco para a música brasileira, e que projetou ainda mais o compositor no cenário nacional.

Antonio Carlos Belchior é o nome legítimo do rapaz latino-americano, conforme O POVO apurou em visita a Nilson Belchior, irmão caçula do artista e guardião de fotografias, lembranças e documentos da família. Entre eles, a certidão de nascimento de Belchior - com preciosos detalhes sobre a origem do sobralense. Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes é um personagem criado pelo cantor que passou a se identificar como “o maior nome da MPB”. Neste projeto estão impressos o homem, o personagem, o irmão, o amigo, o ídolo... Conheça mais sobre cada um deles a seguir.

Apenas um rapaz...

Cinco anos antes de Alucinação ganhar as emissoras de radio, Belchior era um estudante de Medicina da UFC. Circulava em importantes corredores da cultura de Fortaleza - como o Bar do Anísio, na Beira Mar - e trabalhava no programa da TV Ceará Porque Hoje é Sábado, que apresentou a nova geração da música local. Mas foi em 1971, em uma viagem cheia de percalços, que Belchior conseguiu projetar suas composições nacionalmente. Deixou para trás a faculdade e a vida em Fortaleza. Juntou os pertences e foi para o Rio de Janeiro.

"Eu decidi de repente e de um dia para o outro fui embora, sem documentos da escola e sem dinheiro. As coisas foram bastante complicadas e difíceis porque além de não conhecer ninguém, eu tava com o orgulho do pobre: 'Se é pra vencer, vou vencer de qualquer jeito'", contou o compositor em entrevista ao O POVO, em janeiro de 2004. À época da viagem, além da faculdade e do programa de televisão, ele era professor em escolas de Fortaleza. Belchior foi um dos cearenses a embarcar para o circuito "Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo". Junto dele estavam Fausto Nilo, Teti, Rodger Rogério. Todos amigos e parceiros de música.

"Ele fez quatro anos de Medicina e disse para mim que não era aquilo que queria. O papai pediu muito para ele terminar, pois faltava só um ano. Ele disse que não, que iria viver de música", conta Nilson Belchior, irmão do cantor. Por poucos dias, o compositor ficou hospedado com um tio. Depois, fez morada na casas de amigos, apartamentos em Copacabana, circuitos culturais. Da capital carioca, seguiu para São Paulo. Lá, firmou residência e sucesso. Casou e teve filhos.

Alimentou segredos guardados em família. Os discos borbulharam, ano após ano, até 1999, data do lançamento do álbum Auto-Retrato. Agora, Belchior encara o autoexílio. Distante do público e da mídia, transformou-se em ícone pop e figura cult. Para os mais próximos, continua sendo apenas um rapaz latino-americano.

Frases

Em 70 anos de vida e 42 de carreira, Belchior foi ouvido pelo O POVO diversas vezes. Veja trechos de entrevista concedida ao Vida & Arte em agosto de 2007.

"Eu passei minha infância em Sobral e posso dizer que minha vida lá foi a base pra tudo. Foi lá que eu vi a arte das igrejas, os mestres, as bandas de músicas. Todas essas coisas que foram significativas na minha infância, durante o período dos meus estudos, que foi a coisa mais importante que aconteceu"

"Nesse tempo do colégio de padres, a música era uma disciplina normal no currículo. Essas coisas me encaminharam para o fazer artístico".

"Olha, minha família sempre foi muito musical no sentido do gosto. Nunca teve ninguém profissional na minha família. Meu avô tocava flauta e sax, minha mãe cantava no coro da igreja, tinha aqueles tios boêmios, que cantavam e tocavam violão. Seresteiros, né? Nesse período, ouvia muito rádio. Tinha muito alto-falante no Ceará".

"Olha, essas fugas de casa foram constaaaantes (risos). Sempre fui um menino muito levado, inquieto e isso me levou a fugir várias vezes de casa, mas eu sempre voltei".

"Essas fugas mais longas foram mesmo pra estudar no mosteiro, por exemplo, ou pra me ausentar de casa para ser estudante na cidade. Coisas da rebeldia estudantil necessária, né?"

"Num momento da vida, você tem que afirmar sua própria vontade e seu próprio modo de existência. Só existe liberdade, onde você pode dizer não. Então, eu sempre disse o não que era necessário”.

Discografia completa:

1974 – Belchior (Continental – LP)

1976 – Alucinação (Polygram – LP/CD/K7)

1977 – Coração Selvagem (Warner – LP/CD/K7)

1978 – Todos os Sentidos (Warner – LP/CD/K7)

1979 – Era uma Vez um Homem e Seu Tempo/Medo de Avião (Warner – LP/CD/K7)

1980 – Objeto Direto (Warner – LP)

1982 – Paraíso (Warner – LP)

1984 – Cenas do Próximo Capítulo (Paraíso/Odeon – LP)

1986 – Um show - 10 anos de sucesso (Continental – LP/ K7)

1987 – Melodrama (Polygram – LP/K7)

1988 – Elogio da Loucura (Polygram – LP/K7)

1990 – Trilhas sonoras (Continental – CD/ LP/ K7)

1992 – Eldorado - com Eduardo Larbanois e Mario Carrero (Movieplay – CD)

1993 – Baihuno (MoviePlay – CD)

1995 – Um concerto bárbaro (Polygram – CD)

1996 – Vício Elegante (Paraíso/GPA/Velas – CD)

1999 – Auto -Retrato (BMG – CD)

2004 - As várias Caras de Drummond

Belchior teve uma infância de menino livre, que roubava ata no quintal do vizinho, louco que era pela fruta. O pai era comerciante – "um bodegueiro", como disse em entrevista ao O POVO em janeiro de 2004 - e cada irmão tinha que se virar. "Então, eu fazia máscaras de Carnaval, pegava galinhas, pombas...", revelou. É o terceiro filho do casal Dolores Gomes Fontenelle Fernandes e Otávio Belchior Fernandes.

À época, o menino já demonstrava tendência para as letras, as artes e a filosofia. Era apaixonado por livros, por bibliotecas e por todo tipo de leitura — lembra Nilson Belchior, irmão do cantor, que recebeu a reportagem do O POVO em sua casa, na Parquelândia. Advogado aposentado, Nilson lembra que o garoto "se destacava das outras pessoas pelo intelecto apurado". Ainda adolescente, substituía os professores de matemática, história e português. Gostava dos autores clássicos, da literatura erudita, dos idiomas estrangeiros. Tinha especial interesse por latim. Mais tarde, a inteligência rendeu vaga no Liceu do Ceará, no Seminário de Guaramiranga e o primeiro lugar no vestibular de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC).

"Era um grande barato a casa do Belchior. Ele sempre foi um pessoa muito organizada, muito culta, lia muito. Em toda a loucura daquela casa, ele encontrava uma organização. Era uma produção coletiva meio inconsciente até, mas exigia organização" Teti (amiga e cantora cearense).

Foi no Liceu que Belchior conheceu Fausto Nilo, que ele definia como "meu parceiro e grande compositor brasileiro". Naquele tempo, nenhum dos dois pensava na música como carreira. O jovem Fausto, hoje um renomado arquiteto, gostava de desenhar. Já Belchior continuava com leituras afiadas sobre temas humanos. Juntos, eles caminhavam pela rua Liberato Barroso, até o Centro, para ir ao cinema. "No primeiro científico, ele não apareceu. Não se matriculou. E desapareceu", lembra Fausto Nilo, ao O POVO.

O arquiteto terminou os estudos da escola sem a presença do companheiro de caminhadas. Em 1962 ou 1963, na rua Major Facundo, escutou uma voz: "Fausto, como vai?". Era Belchior, com roupas de frade. "Ele me deu muitos conselhos de como conduzir minha vida. Fiquei desorientado. Era meu amigo com aquela compenetração. Fiquei parado. Ele foi andando no rumo da Duque de Caxias e eu fiquei olhando muito tempo. Até que ele desapareceu", recorda Fausto.

Belchior era um sedutor, diz a cantora Amelinha. "Com sua voz rouca, sua conversa afiada, agradável, divertida, e com seus abraços carinhosos. Um sedutor com jeito de índio, meio santo e meio profano, acho que pelo fato de ter estudado filosofia com os frades e estudado Medicina, mais o talento pessoal. Ele tinha uma facilidade de criar e recriar histórias. A mesma história ele contava de formas diferentes. As mulheres se derretiam e os homens ficavam fascinados com sua performance elegante", aponta a intérprete que gravou uma música do amigo no disco Janelas do Brasil (2011).

Por trás do mito há um intelectual que traduz do grego para o inglês, lê Dante Alighieri, é fluente em língua latina e se apaixonou pela sonoridade dos Beatles. Por trás do mito há um homem de conhecimentos teológicos e fluente em latim. Tota Batista, amigo e ex-sócio de Belchior, lembra do bem-querer do compositor pela terra natal, Sobral, para onde o acompanhou em várias ocasiões. "Ele contava histórias com medo de eu dormir na direção. Às vezes, pegava o violão, botava os pés no painel do carro e tocava Fagner, Ednardo, Bob Dylan", conta Tota.

Por trás do mito, há um cancioneiro, um poeta, um artista plástico. Por trás do mito, há um 70 anos de sonho, de sangue e de América do Sul. O homem, não apenas o cantor e compositor, é querido por dezenas de amigos – músicos ou não – que recordam das peripécias de Belchior com ternura e saudade.

Saudade de irmão

Nilson Belchior é engenheiro e advogado aposentado, tem quatro filhas, mora no bairro Parquelândia e tem uma saudade na vida: o irmão Antonio Carlos Belchior. Se para os outros, o cantor e compositor representa a musicalidade de uma geração, a genialidade de um cancioneiro, para Nilson, o músico é a infância vivida em liberdade, é a conversa no fim da tarde, é a presença familiar.

Narrando as histórias para a equipe do O POVO, ele se perde entre as recordações variadas da meninice e da adolescência. "Eu só chamo de Antonio Carlos. Eu não chamo meu irmão de Belchior. Quando falar Antonio Carlos, vocês já sabem de quem eu estou falando", avisa logo na chegada. Nilson era o responsável por buscar o irmão, que perdia a hora de voltar para casa escutando os cantadores nas feiras livres do interior. "E quando eu não encontrava o Antonio Carlos, ah, mamãe ficava zangada e brigava comigo", diverte-se. A mãe - Dolores Gomes Fontenelle Fernandes, falecida há cerca de três anos - tinha em Belchior um "xodó".

Nilson tem saudades do irmão. Não do artista, das composições ou dos shows. É saudade de uma infância compartilhada. "Se ele viesse para Teresina, ele vinha aqui. Se ele viesse para Recife, ele vinha aqui", conta. As visitas começaram a rarear. Nilson lembra da última visita de Belchior ao Ceará antes do auto-exílio. O compositor queria resolver algumas burocracias locais e pediu ajuda ao irmão. Os negócios, entretanto, ficaram inacabados.

Nas paredes da casa há várias fotografias, exibidas com pompa. Duas se destacam: um retrato de Belchior ainda bebê, com um ano de idade, e um quadro que reúne imagens de vários irmãos. Nilson aponta a fotografia de Belchior aos 12 anos, rosto redondo de criança, o olhar já compenetrado.

"O Belchior parecia um arquivista. É um cara culto mesmo, muito inteligente e sensível" Rodger Rogério (cantor e compositor).

"Ele é um filósofo. Conhece a obra completa de Kant, Schopenhauer, Nietzsche. Ele é um dos maiores especialista do mundo em Dante Alighieri" . Jorge Mello (amigo e ex-sócio)

"As mulheres se derretiam e os homens ficavam fascinados com sua performance elegante"

Em entrevista, Amelinha fala sobre a convivência com Belchior e a saudade do amigo, cantor e compositor

O POVO – Como você conheceu o Belchior?

Amelinha – Foi por volta de janeiro de 1971, já morando em São Paulo. Mas tive que voltar em dezembro a Fortaleza, pois meu pai havia falecido em dezembro. E digo isso porque, 15 dias depois, Ricardo Bezerra, que tinha sua família muito amiga da família do meu pai, me convidou para fazer um programa de televisão na TV Ceará. Então, fui conhecendo todos os cantores e compositores cearenses nos dias que se sucederam. No bar do Anísio, bar do Gerbô, ao lado da TV, nas rodas dos culturais. Agora, precisamente o dia (que conheci o Belchior) acho que é melhor perguntar a ele que tem uma memória espetacular e até me disse um dia um macete: "Amelinha, procura não esquecer muito as coisas ruins, pois você acaba esquecendo os detalhes das boas neste processo de se livrar de más lembranças". Questões da mente. E acho que ele tem toda razão e faz sentido.

O POVO – Como era esse Belchior que você conheceu ainda iniciando uma carreira na TV, em Fortaleza?

Amelinha – Cheio de charme, já seduzindo as platéias bem menores, ou seja, pessoas que ia conhecendo, com sua voz rouca, sua conversa afiada, agradável, divertida, e abraços carinhosos. Um sedutor com jeito de um índio, meio santo, meio profano. Acho que, pelo fato de ter estudado filosofia com os frades e estudado medicina, mais o talento pessoal. Ele tinha uma facilidade de criar e recriar histórias. A mesma história ele contava de formas diferentes. Aqui já estou falando também de São Paulo, quando havia os saraus na casa dos bacanas, dos mecenas, dos produtores, etc. As mulheres se derretiam e os homens ficavam fascinados com sua performance elegante. Distinta, como diria o matuto. E ele sempre soube ouvir e dar atenção às pessoas.

O POVO – Como foi a gravação do disco Pessoal do Ceará, de 2002, que reuniu você, o Belchior e o Ednardo?

Amelinha – Fui convidada por eles. Nesta época, eu morava num sítio em Niterói (Rio de Janeiro), em Pendotiba, tipo um rural dentro do urbano. E convidei Ednardo para um almoço na minha casa que eu mesma preparei. Lá era um lugar muito agradável em que eu recebia muitos amigos da música, literatura e jornalistas. O propósito era conversarmos sobre o repertório. Na verdade, é um disco autoral onde uma cantora, amiga e da turma boa, é convidada. Antes estive na casa do Ednardo pra ver os termos do contrato. Achei super legal, muito significativo e verdadeiro por tudo que já tínhamos vivido juntos. As músicas foram escolhidas e definidas por eles. E, pra mim, foi uma alegria participar. A produção é de Robertinho de Recife.

O POVO – Como foi esse encontro de amigos no estúdio?

Amelinha – Foi muito prazeroso pegar os tons com Robertinho e definir a parte onde cada um entrava quando era trio, quando era dupla e quando era solo – no caso, quais músicas cada qual cantaria sozinho. Foi tudo bem tranquilo. Bel estava num humor maravilhoso, demonstrando uma maturidade bonita e segura. Ednardo sempre falando coisas bem (do movimento literário) Padaria Espiritual. E Robertinho feito um mago desenhando e estruturando a edificação do projeto, brilhantemente e pacientemente. Ele fez com muito amor.

O POVO – Na capa desse álbum vocês estão dividindo uma mesa, o que remete aos tempos de boemia. Onde elas foram feitas?

Amelinha – As fotos de capa e para divulgação foram feitas numa produtora em Laranjeiras e ficaram chocantes de boas. Foi uma tarde maravilhosa.

O POVO – E por que esse projeto não seguiu com shows e novas edições?

Amelinha – No momento da divulgação é que foi abortado o plano de vôo por parte da gravadora. Me parece que por discordâncias entre Ednardo e a gravadora. Nunca entendi muito bem. Mas penso que houve alguma precipitação por parte do Ednardo. Ao meu ver, é preciso muito jogo de cintura nessas horas e o mais importante é não deixar a peteca cair. Suprimir egos e por aí vai. A diretora de imprensa me ligou no hotel em São Paulo me comunicando que iriam parar com a divulgação, o que foi uma pena. Mesmo assim, é um projeto lindíssimo e penso que pode ser reeditado a qualquer momento o que é bem melhor agora do que depois. É um projeto campeão e que vendeu tudo que tinha, todo o estoque. E tanto saia como venderá muito mais, tenho certeza disso. às vezes acontecem coisas que, na verdade, são derivadas da adrenalina do processo . Principalmente num projeto de tal importância como este. Portanto, o que vale mesmo é o essencial. É maximizar o positivo.

O POVO – O que você acha do disco Alucinação, que está completando 40 anos?

Amelinha – Nossa, maravilhoso! Há algumas semanas, falando na FM Universitária, pela comemoração de seus 40 anos, pedi, como ouvinte, pra que tocassem Alucinação. Como faz tempo que não ouço, nem vou poder detalhar mais. Mas seria desnecessário.

O POVO – O Belchior faz parte de um trio de compositores que marcou a música cearense a partir dos anos 1970. Como você compara o papel de cada um deles como músico, pessoa.

Amelinha – Eles se completam. São titãs.

O POVO – Com exceção do coletivo Pessoal do Ceará, por que você só foi gravar Belchior no disco Janelas do Brasil?

Amelinha – Sabe que eu também me pergunto isso? Mas, além da minha ressente gravação no Janelas do Brasil, pretendo gravar mais. Inclusive vai ser uma que ele me sugeriu que gravasse.

O POVO – O que você pensa sobre esse desaparecimento do Belchior?

Amelinha – Ainda não cheguei a uma conclusão nas minhas conjecturas.

O POVO – Qual foi a última vez que você esteve com ele?

Amelinha – Num show em Juazeiro do Norte e acho que depois em 2007, num show que iríamos fazer em Belo Horizonte. Eu e minha banda, ele e sua banda e Renato Teixeira e sua banda. Mas o produtor local fugiu com o dinheiro. Foi um Deus nos acuda!

O POVO – Como foi a história de você ter encontrado um carro do Belchior?

Amelinha – Fui a Recife, por volta de 2010, fazer um show numa casa chamada Manhattan e o dono da casa fez questão de ir me buscar no aeroporto pessoalmente. Então, saímos conversando pra o estacionamento e eu olhei assim para o lado direito e, entre muitos carros, tinha uma Mercedes bege toda empoeirada com coisas escritas nos vidros, no carro total, até na capota. E, de longe, falei "parece o carro do Bel", pois eu já havia andado com ele em São Paulo. Aí o meu amigo disse: "É o carro do Belchior". Fiquei emocionada. Me aproximei e tinha escrito, entre outras coisas, "Volta Bel". Pra você ver a força do cara.

O POVO – Do que mais você sente falta no Belchior? Acredita que ele volta a retomar a carreira?

Amelinha – Dele mesmo, de saber que ele está por perto, com aquele cachimbo, suas pinturas, sua presença marcante e amiga. Penso que ele volta. Quero que ele volte. Torço para ele voltar e, quando isso acontecer, vai ser mega!

O ano de 1976 foi decisivo na carreira de Antonio Carlos Belchior. Então com 29 anos e morando em São Paulo, ele já trazia na bagagem os compactos Na Hora do Almoço e Sorry, Baby, além do primeiro álbum, chamado Belchior, de 1974. Na curta trajetória artística, o compositor tinha ainda no currículo a vitória no Festival Universitário da Canção Popular (1971), da TV Tupi, com a música Na hora do Almoço. Belchior, contudo, ainda não havia sido, de fato, projetado no País.

Foi Elis Regina quem mudou os rumos do jovem artista, ao incluir Velha Roupa Colorida e Como Nossos Pais no repertório do LP Falso Brilhante, lançado no começo de 1976. As músicas explodiram no País e, em maio daquele ano, também estavam no segundo LP de Belchior, o antológico Alucinação. O disco reverbera até hoje, 40 anos após sua concepção.

Além de Elis, o Alucinação foi realizado graças ao então produtor da gravadora Philips, Marco Mazzola, que acreditou naquele cearense de voz anasalada e suas letras intrigantes. "Eu já produzia a Elis, tinha uma ligação muito grande com ela. Um dia, ela me mostrou algumas músicas do Belchior e eu falei que o cara era muito bom", conta Mazzola em entrevista exclusiva ao O POVO.

O produtor, então, entrou em contato com Belchior, mandou passagens para que ele fosse ao Rio de Janeiro, e o restante é história. Por acreditar no material que tinha em mãos, Mazzola enfrentou os colegas de gravadora, que, a princípio, torceram o nariz para as músicas do sobralense. "Na minha cabeça, ele era um Bob Dylan brasileiro". Em pouco tempo se veria que Mazzola havia acertado na aposta.

O guitarrista Rick Ferreira, que gravou com o letrista e cantor no disco Alucinação, é sintético: "Belchior compõe um estilo de música que foi minha formação de folk e rock. As letras têm muita semelhança com o Bob Dylan, trazendo o humor e as letras quilométricas", disse ao O POVO. Do contato entre os músicos, surgiu, ainda, a composição chamada Meu Nome é Cem, na década de 1980. "A obra do Belchior é imortal. Tem muita gente, hoje, descobrindo as músicas dele, porque ele é um dos maiores e vai atravessar gerações", constata.

Muito além do Alucinação

Belchior é conhecido por ser um compositor de poucas parcerias e isto fica muito claro no disco Alucinação, em que todas as 11 faixas foram feitas apenas por ele. Esse caminho quase solitário de composição se traduz em uma obra impregnada da personalidade do autor, que escreveu sobre suas memórias, seus sentimentos e suas impressões de mundo.

Pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), com tese e dissertação sobre a obra de Belchior, Josy Teixeira ressalta uma vastidão de referências que o poeta imprimiu em suas composições, como conflitos geracionais e ideológicos (Como nossos pais), a relação entre o regional e o nacional no Brasil, as questões migratórias entre o campo e a cidade (Monólogo das Grandezas do Brasil) e o papel do jovem e do povo brasileiro num cenário mais amplo da América Latina.

"Para além dos temas políticos, encontramos outros mais filosóficos (Divina comédia humana) e que envolvem a relação do homem com a religião (Coração selvagem, Conheço o meu lugar) e com a ciência (Fotografia 3x4)", analisa.

Arquiteto e letrista, Fausto Nilo acredita que no grupo de compositores surgido na geração deles, Belchior é o melhor letrista. "Ele é uma pessoa intelectualmente densa e, também, muito pragmática, no sentido interessante, o de entender a realidade. Eu acho que, como letrista, ele é um pouco cínico. Eu também sou".

Curiosidades

> A gravação do Alucinação foram feitas em apenas três dias. Apenas um rapaz latino-americano foi o primeiro single, antes do lançamento do disco.

> O nome do álbum seria Apenas um rapaz latino-americano, mas Belchior e Mazzola viram que tinha muito a mais a ver botar o nome Alucinação.

> O fundo azul da capa do disco é parte de uma pintura que Belchior havia feito. Aldo Luiz foi o diretor de arte, Nilo de Paula ficou com o layout e Januário Garcia fez as fotos.

Artigo: Guia musical de uma geração (Por Nelson Augusto)

Para começar, afirmo que o Alucinação, com letras tão quilométricas quanto o "nome" do cantautor do álbum, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, é um dos meus dez discos brasileiros preferidos, ao lado também das audições mais constantes de Refazenda (Gilberto Gil), Na Quadrada das Águas Perdidas (Elomar), Todos os Olhos (Tom Zé), Acabou Chorare (Novos Baianos), Meus Caros Amigos (Chico Buarque), O Azul e o Encarnado (Ednardo), Raimundo Fagner, Transa (Caetano Veloso) e Massafeira Livre (Coletivo). Coincidentemente, todos foram lançados na década de 1970, afora o Massafeira, de 1980.

Quando o então elepê Alucinação foi lançado, no ano de 1976, eu também começava minha carreira universitária, aprovado que fui, no segundo semestre, nos vestibulares da Unifor (Ciências Contábeis) e UFC (Letras). Na Universidade de Fortaleza, na cadeira de Introdução à Sociologia, tive como amiga de turma, e então estudante de Ciências Sociais, Ângela Belchior, irmã do compositor, a qual, assim que botei os olhos nela, imaginei o grau de parentesco e vi dali, uma boa oportunidade de conhecer, pessoalmente, um dos meus ídolos musicais. Com o contato mais direto, através das aulas, com o passar do tempo, e a vinda do Belchior num final de ano ao Ceará, sua mana me proporcionou esse encontro.

Foi o primeiro de uma série de outros, os quais começaram a acontecer com mais frequência, a partir de outubro de 1981, quando comecei a trabalhar na Rádio Universitária FM e lá pude realizar entrevistas com Belchior, inclusive falando sobre o LP Alucinação e sua obra até então. Desta série de conversas, editei, entre outros, um programa com a temática "A influência das músicas dos Beatles nas composições de Belchior".

Quando foi lançado, Alucinação veio alicerçado por duas músicas que já haviam sido gravadas no antológico LP Falso Brilhante (1976) de Elis Regina. Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, já experimentadas com sucesso, ao vivo, pela Pimentinha no seu espetáculo homônimo desde 1975, e que se estendeu com sucesso em mais de mil apresentações no Brasil, até o início do ano de 1977. Outra incluída no álbum foi a balada Apenas Um Rapaz Latino Americano, título com o qual o artista cearense também passou a ser chamado em muitas ocasiões, em textos jornalísticos.

Completam o Alucinação mais sete criações com letras e músicas de Belchior: Sujeito de Sorte, Como o Diabo Gosta, Não Leve Flores, A Palo Seco, Fotografia 3 x 4, Antes do Fim e a faixa título do LP. Em todas, mensagens vão da crítica para a ditadura de plantão da época, passando por citações autobiográficas, cotidianos de personagens das cidades grandes e inquietações da juventude. Melodias com atmosferas de baladas, canções, rock e blues são recheadas de referências para obras dos cantautores Gilberto Gil , Raul Seixas e Luiz Gonzaga, do repentista Zé Limeira, do escritor Edgar Allan Poe e também celebram a suas inclinações musicais pelas composições dos Beatles.

Oficialmente, a estreia profissional de Belchior se deu em 1971, com o lançamento do compacto Na Hora do Almoço, dividido com os intérpretes Jorge Telles e Jorge Neri. Nos 45 anos seguintes, sua discografia se dividiu entre alguns poucos discos de inéditas, projetos especiais – um trabalho revisionista dividido com Ednardo e Amelinha, e outro onde atuou somente como intérprete – e um caminhão de regravações e coletâneas. Se comparada à de contemporâneos, essa obra é curta e contou com a presença de poucos parceiros (são menos de 20 na discografia oficial e mais alguns espalhados em discos alheios). Não à toa, boa parte dessa obra é escrita em primeira pessoa.

No entanto, se foram poucos os parceiros de composição, foram muitos os companheiros de estúdios e palco. Ricardo Bacelar conheceu Belchior no fim da década de 1980, quando se apresentaram juntos no Pirata. Em meados da década seguinte, o pianista trabalhava em São Paulo e foi chamado pelo produtor Guti Carvalho para fazer a coordenação musical e assumir os teclados do disco Vício Elegante, álbum de intérprete do autor de Como Nossos Pais. "Ele estava se regravando muito e queria um disco de músicas inéditas. Mas, como não tinha nada interessante, ele gestou o disco experimentando com piano e voz. Cantava uma e cantava outra, desenhando o repertório pelos autores", explica Bacelar que assinou com Belchior a faixa que dá nome ao disco. "Essa música a gente fez em 10 minutos, no estúdio. Ele já tinha a letra esboçada", lembra.

Com uma sonoridade que puxa para um pop contemporâneo, Vício Elegante trouxe releituras bem particulares para O Tolo (Roberto/ Erasmo), Esquadros (Adriana Calcanhotto), Charme do mundo (Marina/ Cícero) e outros. Mesmo se apropriando de canções de outros, Belchior precisou de pouco tempo para dar voz ao repertório. "Ele é muito preciso, muito afinado. Tem até vozes do disco que é a original, de tão bonita que ficou", revela Bacelar acrescentando que Belchior gostou de cantar com o arranjo que misturava sons orgânicos com eletrônicos. "A voz do Bel não precisava ser atualizada, só a sonoridade", explica.

O gaitista Jefferson Gonçalves também trabalhou com o sobralense, mas de uma forma diferente. Fã do compositor e do disco Alucinação, o carioca teve sua primeira experiência profissional quando foi chamado para fazer um solo de gaita no disco Um Concerto Bárbaro. Com voz e cordas gravadas ao vivo, a participação de Jefferson foi feita em estúdio. "O produtor me chamou pra gravar e queria um clima de ao vivo, algo mais próximo do que eles estavam fazendo ali. Então, eu fiz uns improvisos em cima da voz dele", lembra o carioca que só foi conhecer o "parceiro" tempos depois, no Dragão do Mar. "Ele elogiou a gravação e ficamos conversando ali sobre música".

Há um consenso entre os músicos ouvidos para esta reportagem sobre a responsabilidade e cuidado profissional de Belchior. Pontualidade, disponibilidade, facilidade de ouvir e aceitar sugestões. No entanto, parte dessas qualidades foram se perdendo à medida que o rapaz latino-americano se aproximou da produtora cultural Edna Assunção de Araújo, que assinava Edna Prometheu. Eles se conheceram em São Paulo, quando ela dividiu com Belchior o desejo de realizar uma exposição em Fortaleza em homenagem ao artista plástico Aldemir Martins.

Antes de acompanhar Belchior num jogo de gato e rato envolvendo família, jornalistas e a Justiça Brasileira, Edna assumiu os papeis de namorada e assessora do compositor. E foi aí que começaram a surgir alguns problemas. Relação distante com os músicos, atrasos nos pagamentos e saídas furtivas depois dos shows passaram a ser comuns. O guitarrista Mimi Rocha esteve ao lado de Belchior em diversos shows. Mesmo informalmente, chegou a assumir a direção musical em algumas oportunidades. "Uma vez, fomos fazer um show na Taíba e foi maravilhoso. Depois, o prefeito de São Gonçalo até queria conhecer o Bel. A Edna chegou, mandou todo mundo pra vã e fomos pro hotel esperar o cachê. A banda levou o maior chá de cadeira e o prefeito também. No final, o Belchior não apareceu, ela veio com os cachês e pediu mais tempo para o prefeito, que acabou sem conhecer o Belchior".

Artista plástico e ex-sócio, Tota Batista lamenta a forma como Belchior tratou a carreira nos últimos anos. Ele lembra saudoso de como o amigo era desapegado a certas formalidades. "Vi muitos artistas querendo gravar músicas dele e tinha aquele problema de encontrar. As pessoas me procuravam", conta o amigo apontando que cansou de ver o compositor autorizando jovens artistas a gravarem suas músicas e chamando instrumentistas para improvisarem algo durante seus shows, sem ensaio nem nada. "Às vezes o cara ficava com vergonha, mas ele dizia que não tinha problema. Eu achava esse gesto muito humano". E é essa imagem que Tota prefere guardar, a de um Belchior próximo de quem amava sua arte.

Artigo: Lírica de um alucinado (Por Luciano de Almeida Filho)

Para compreender bem o cenário do lançamento do icônico Alucinação, o segundo e mais bem sucedido LP de Belchior, em 1976, é preciso conhecer o cenário onde ele surge. A MPB era dominada pelos grandes ícones surgidos na década de 1960. Havia também a geração revelada nos festivais universitários e aí também se incluíam Fagner, Belchior e Ednardo.

Mas os três cearenses eram mais ligados pela mídia ao grupo de novos artistas nordestinos que haviam migrado para o "Sul Maravilha" na cola dos baianos que fizeram a Tropicália - Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Quinteto Violado, e logo depois Zé Ramalho e Elba Ramalho. Havia uma necessidade da indústria fonográfica de fomentar movimentos e o chamado Pessoal do Ceará – nome surgido a partir do disco coletivo de Ednardo, Rodger Rogério e Teti (1973) - polarizou com os mineiros do Clube da Esquina, grupo formado em torno de Milton.

Em 1976, os cearenses tinham status de cult entre o público mais antenado, universitários etc e tal. Fagner havia feito temporada de sucesso no pequeno teatro Tereza Rachel, no Rio, e seus primeiros discos conquistaram uma plateia cativa. Mucuripe, parceria dele com Belchior, foi gravada por Elis Regina (1972) e Roberto Carlos (1975). Elis e Fagner se conheceram através do ex-marido da cantora, Ronaldo Bôscoli. Com o fim do casamento, Elis se afastou de Fagner mas havia ficado positivamente impressionada pelas composições de seu conterrâneo, Belchior. Este havia feito um burburinho com Na hora do almoço. Em 1974, lançou um primeiro LP pelo selo Chantecler, com boas composições mas trazendo arranjos pouco inspirados.

"Há a esperança que Belchior retorne em grande estilo com composições que reflitam sobre este período de autoexílio dos últimos oito anos" Luciano Almeida Filho (jornalista, crítico de música).

O sucesso popular dos artistas cearenses se deu exatamente no ano de 1976. Em maio daquele ano, a TV Globo estreou a novela Saramandaia e escolheu Pavão Mysteriozo, que Ednardo havia lançado no seu primeiro disco solo dois anos antes, para tema de abertura, ganhando imenso êxito. Um pouco antes, em dezembro de 1975, Elis Regina estreava o show Falso Brilhante que trazia duas músicas de Belchior com grande força interpretativa: Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida. O burburinho foi tamanho que, antes mesmo do disco dela ser lançado em 1976, a gravadora Philips o contratou e o colocou imediatamente em estúdio sob a tutela do produtor Mazzola.

Assim nasce Alucinação, até hoje considerado o melhor trabalho de Belchior. A produção de Mazzola coloca a voz personalíssima do sobralense no lugar certo, valorizando suas qualidades trovadorescas com os arranjos que trazem um pique de folk-rock, algo como uma versão brasileira de Bob Dylan. O resultado é o sucesso de canções como Apenas um rapaz latino-americano e a faixa-título. A Palo Seco ganha nova leitura, com mais propriedade que no LP de estreia. O disco trouxe ainda as excelentes Fotografia 3x4, Sujeito de Sorte e o country Não leve flores.

Belchior se tornou um compositor concorrido. Vanusa estouraria nas rádios com sua Paralelas, também gravada por Erasmo Carlos. O cearense continuaria fazendo discos de alto nível, como os seguintes Coração selvagem (1977), Todos os Sentidos (1978) e Era uma vez um homem e seu tempo (1979). Caiu um pouco de produção no decorrer da década de 1980 e 90 quando lançou vários discos de releituras de seus grandes sucessos – o melhor deles é Autorretrato (1999), com ótimos arranjos atualizados.

Mas ainda fez um grande trabalho pouco valorizado na sua discografia, Baihuno (1993). Há a esperança que Belchior retorne em grande estilo com composições que reflitam sobre este período de autoexílio dos últimos oito anos. Verve lírica ele já provou que tem de sobra.

Luciano Almeida Filho é jornalista, crítico de música e filho de sobralense.

Quando jovem, era comum Belchior fugir de casa. Por ser um menino inquieto, acabava saindo furtivamente por períodos de tempo consideráveis. Mas sempre voltava. "Essas fugas mais longas foram mesmo pra estudar no mosteiro, por exemplo, ou pra me ausentar de casa para ser estudante na cidade", disse o artista em entrevista ao O POVO, em agosto de 2007, cerca de um ano antes de sair de cena. "Num momento da vida, você tem que afirmar sua própria vontade e seu próprio modo de existência. Só existe liberdade onde você pode dizer não. Então, eu sempre disse o não que era necessário”.

Em 2008, a decisão de afastar-se de amigos e da carreira se tornou mais incisiva e desde então já se vão quase dez anos. O artista não retornou para os palcos, não mantém contato com velhos amigos, não foi ao sepultamento da mãe, apesar da forte relação que tinha com ela. As suposições são as mais variadas, desde possíveis dívidas, uma possível depressão e até que a atual companheira, Edna Prometheu, o teria isolado. Esse mistério em torno da figura do artista o transformou em uma espécie de mito no Ceará e no Brasil.

Irmão um ano mais novo que Belchior, o advogado aposentado Nilson Belchior não confirma as especulações criadas nos últimos anos. Para ele, o irmão não foi "empurrado pelas circunstâncias". "Meu irmão é altamente inteligente. Nenhuma circunstância fez ele ir embora. A não ser a mente dele. Só a mente dele sabe dizer o porquê dele ir embora", analisa.

Arquiteto, letrista e amigo, Fausto Nilo também rejeita as hipóteses criadas e disseminadas para justificar o tal sumiço. Para ele, Belchior passa por um momento que necessita de reclusão, algo que orbita entre o espiritual e o "monastérico". "Às vezes, penso nisso: dele precisar ficar recluso. É uma pessoa que quase foi frade. Como se houvesse uma dualidade entre a vida que ele deixou de frade e o virar artista", acredita.

Fausto rememora a personalidade racional e espiritualizada do velho amigo e resume: Belchior é o cara que saiu do colégio para estudar e virar frade (o que não se concretizou), que largou a vida religiosa para estudar Medicina (não concluiu) e saiu da faculdade ainda em curso para virar artista.

Celebrar o artista

"Pouco importa se o interesse por Belchior foi aumentado pela divulgação do afastamento social dele. O que importa é que ele merece ser lembrado", acredita Josy Teixeira, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), com tese e dissertação sobre a obra do sobralense.

Para ela, os movimentos celebratórios e diálogos com Belchior mais recentes mostram que a obra dele "é plena de significação" e necessita ser mantida viva para ultrapassar as gerações. "Não canso de repetir que a obra de Belchior pode ser colocada ao lado das melhores obras de nosso cancioneiro, de Chico Buarque, de Noel, de Gonzagão. Seu trabalho é um dos mais profundos da história da música brasileira", aposta.

A pesquisadora ressalta ainda que Belchior criou justamente essa imagem do "rapaz latino-americano", que ele tanto cantou, para além da imagem do homem do Ceará e interiorano. Se observarmos bem, o conceito de latino-americano, na verdade, sempre foi posto em prática por Belchior, que saiu do Ceará, fez morada no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Uruguai e, agora, habita o imaginário das gerações que celebram a poética dele. Onde estiver.

Artigo: Um trovador cearense (Por Pedro Rogério)

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes ou, para nós que nos apropriamos de seus sons e palavras, apenas o rapaz latino-americano Belchior. O mago das palavras, o atento leitor de seu tempo, que tão bem transpôs as dores, denúncias, novos comportamentos do mundo para as suas belas canções. Escrevo "suas" em respeito aos direitos autorais, mas poderia dizer que a obra deste trovador cearense-nordestino-brasileiro-universal é nossa. Belchior é um dos marcos mais importantes da nossa música.

Sua voz com timbragem meio rouca, nordestina, soa de forma exótica para os padrões estéticos das décadas de 1960 e 1970. Ao lado de Fagner, de voz rasgada, quase agressiva, de um sobrevivente em meio ao campo de batalha da indústria fonográfica e ao lado de Ednardo que interpreta a cultura em sonoras melodias, Belchior se destaca entre os artistas da década de 1970 por sua habilidade com as palavras. O trovador do Pessoal do Ceará!

"Mas esse "eu" é um "eu" coletivo que narra os comportamentos, as dores, as trajetórias, a sede de mudanças de toda uma geração" Pedro Rogério (Professor e pesquisador da UFC).

Esse cantador nordestino sai de Sobral herdando de seu pai - Otávio Belchior Fernandes - a familiaridade com a escrita. Seu pai era uma espécie de bodegueiro e ao mesmo tempo um Juiz de Paz por ser conhecido como o detentor da melhor caligrafia da região. Estudou em um colégio de padres, em Sobral e foi seminarista. Desta primeira formação certamente nasce seu talento com as letras. Ao se deslocar para Fortaleza, assim como seus pares (Fausto Nilo que vem de Quixeramobim, Téti que vem de Quixadá, Fagner que vem de Orós) encontra em meados da década de 1960 um ambiente estudantil em efervescência política. Então, é com toda essa bagagem ligada aos estudos e no envolvimento com o ambiente dos movimentos estudantis no Liceu e depois na Universidade Federal do Ceará que Belchior encontra sua veia artística.

Belchior se apresenta com clareza: "Eu sou apenas um rapaz latino-americano" "e vindo do interior"; e anuncia: "Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão". Essa narrativa na primeira pessoa, não deixa dúvidas que ele está se apresentando. Mas esse "eu" é um "eu" coletivo que narra os comportamentos, as dores, as trajetórias, a sede de mudanças de toda uma geração, traz denúncias do contexto político que interessa a todos do Ceará, do Brasil, da América Latina e do mundo.

Salve esse trovador, cantador, narrador, tradutor, jovem que desceu do norte que ainda sangra e desespera por saber que "nossa esperança de jovens (ainda) não aconteceu". Pedro Rogério é professor da UFC e "filho" do Pessoal do Ceará.

Ensaio | Belchior | 1992