Artigo: Visconde do Rio Branco em 1976 (Por Hamilton Nogueira)
Era 1976. Eu tinha três anos de idade e o meu fim de tarde continha um ritual. Regularmente eu atravessava a rua Visconde do Rio Branco, banhado, arrumado, penteado e perfumado. Sentava nos degraus da casa defronte ao pequeno apartamento onde nasci, e assistia atentamente ao ensaio de um grupo de adolescentes.
Eram adolescentes normais e muito receptivos, diz minha mãe, àquele fã inusitado cujos anos de vida não cabiam em uma só mão. Os nomes dos adolescentes: Rodger, Belchior, Fagner, Ednardo e Teti, para citar apenas alguns.
"Naquele 1976 foi lançado o icónico Alucinação, chegando agora aos 40 anos juntamente com os 70 anos de vida do Belchior, e não sei se temos o que comemorar, mas sei que precisamos falar a respeito". Hamilton Nogueira (jornalista).
A casa da Visconde do Rio Branco ainda está lá. Já foi palco, já foi lembrança, já foi um bar, já foi esperança, porém, como diz a música de parte do grupo com mote em Castro Alves, hoje é nada, nada, absolutamente nada. O prédio é belo e esquecido, metáfora e alucinação da forma como é tratada a qualidade do que ali foi produzido.
Mas o que aconteceu conosco? Por que o mercado passou a decidir tão facilmente o que somos, ouvimos e consumimos? Não se trata de saudosismo, pois sabemos que o passado de fato é uma roupa que não nos cabe mais, no entanto preservar essa roupa é estratégico para o turismo, para a formação musical, para a construção da identidade de um povo, para o respeito à qualidade estética e estímulo ao novo que sempre vem. Vem, mas tem que vir melhor! Não podemos abrir mão disso. Não um novo forjado pelo mercado de rápido consumo, mas sim para mais desenvolvimento intelectual e civilizatório – embora eu tenha sangrado demais e chorado pra cachorro, ainda acredito que devamos perseguir esse sonho.
Naquele 1976 foi lançado o icônico Alucinação, chegando agora aos 40 anos juntamente com os 70 anos de vida do Belchior, e não sei se temos o que comemorar, mas sei que precisamos falar a respeito para quando passar o mal que a força sempre traz, possamos receber melhor aqueles que vêm e teimam em existir e criar, apesar dos pesares.
Se um dia os poderes públicos e privados conseguirem enxergar os escombros deixados pela casa abandonada, torçamos para que não deixe ela em paz dormir na solidão, em um mundo de não tem lá fora, não tem lá dentro, três cadeiras de madeira, uma sala, mesa ao centro, e um pau d'arco florindo à porta sob a qual, em nome do dinheiro, enterramos a nossa música morta. Hamilton Nogueira é jornalista e fiel ouvinte do disco Objeto Direto.
Artigo: Viver é melhor que sonhar (Por Dalwton Moura)
O dourado do Oscar reluzia sobre um dos amplificadores da banda de Bob Dylan na noite fria de São Paulo. O show havia acabado de começar e a "área VIP" seguia com muitos lugares vazios. Não ficava bem, para um mito. Nem para o homem a esconder sob o chapéu a voz mais rouca que nunca.
Mesmo diante da rara presença de Mr. Zimmerman no Brasil, as cadeiras vagas tinham lá sua razão de ser, parte pelos ingressos a novecentos dinheiros, parte pelo fato de ainda se tratar, para muitos, de um artista mais cultuado que efetivamente escutado. Em uma das primeiras fileiras, no entanto, estava um antigo compositor cearense, que o conhecia muito bem.
O encontro com Belchior, para quem tinha o penúltimo e mais barato ingresso para a apresentação, só foi possível porque, diante do embaraço de uma ilha de lugares vazios bem em frente a Dylan, a produção acabou liberando aos "mortais" de outros setores o acesso à área VIP. No escuro e no frisson do show, era correr para tomar assento e não perder o que acontecia no palco, no show da turnê "Modern Times".
"Em uma palavra, o cantautor. Aquele que, no desafio e na magia de compor, cantar e contar a própria obra, transmite sua mensagem como nenhum outro". Dalwton Moura (jornalista).
Foi sentar-se, localizar-se e localizar, ali, bem ao lado, o escritor de canções que mais espelhou Dylan na música brasileira. Das letras longas e livres de rimas às reflexões, imagens, provocações, sentidos múltiplos na prosa poética e prenhe de referências. Da fuga da ditadura do "bom cantor", do "virtuoso instrumentista", para colocar em primeiro plano o criador, senhor da emoção, da ética e estética, da política e da paixão, da novidade e da redundância, da pretensão transformadora desbancando o cinismo produtivista. Tudo a palo seco no projeto da canção popular.
Em uma palavra, o cantautor. Aquele que, no desafio e na magia de compor, cantar e contar a própria obra, transmite sua mensagem como nenhum outro. Sob o olhar de Belchior, Dylan mostrava suas novas canções, revisitando pouquíssimos clássicos, para frustração de quem pagou caro. Era o avesso da crítica com que Belchior deparou tantas vezes, respondendo ad nauseam por que teimava em cantar "sempre as mesmas músicas" em seus shows e por que as regravava tantas vezes.
Ora, porque o público assim o queria. "Quando lanço disco novo, aí sim mostro canções novas no show", argumentava. Diante do burburinho desatento às novas criações de Dylan, como recriminar o velho – e eternamente jovem – Bel?
De volta às cadeiras acolchoadas, aperto de mãos, sorrisos e a pergunta: "Trouxe seus discos para entregar a ele?". Qual nada! Belchior levara como presente, isto sim, seus trabalhos de caligrafia. A peça encaixava com uma das tantas histórias mais tarde criadas em torno de seu "desaparecimento" – ainda tão chocante em tempos de "posto, logo existo", em que toda realidade é mediada e, se não teve "likes", não aconteceu.
Na missão impossível de se fazer recluso em uma esfera pública opressora e onipresente, estaria Belchior se dedicando a transcrever toda a "Divina Comédia" em caligrafia artística? Ou preparando um disco duplo de inéditas, coisas novas pra dizer? Quem sabe urdisse um "retorno triunfal" aos palcos para satisfazer todos os gostos, ganâncias, audiências, efemérides, ansiedades? Seria essa atitude de "sumir", de negar e provocar a sociedade do espetáculo, de se retirar do asfixiante "reality-show", em que todos cumprimos pena como personagens, a sua performance mais instigante, a grande nova obra que dele se reclamava?
Impossível saber. Mas bem se pode supor que, na vertigem do Brasil do golpe e do retrocesso, hoje "nosso herói" apenas conheça seu lugar. E esteja rindo de tudo isso, gargalhando mais e mais ao sabor de cada hipótese sobre seu paradeiro, cada tentativa de explicação, da mesa de bar à rede de TV. Entre uma obra e um destino humano, a opção por ser dono de seus dias e de seus setentanos. Porque, ele disse, viver é melhor que sonhar.
Dalwton Moura é jornalista, crítico musical, compositor e pretende reencontrar Belchior em outro show do Dylan.
O caso Belchior e Elis: a relação simbiática entre o compositor e a intérprete
Belchior e Elis através de "Como nossos pais" ilustram de forma modelar uma interação íntima entre duas espécies que vivem necessariamente juntas, o compositor e o intérprete.
Por Josy Teixeira
Em 17 de março de 2015, aquela que é considerada a maior cantora do Brasil, Elis Regina, teria completado 70 anos de vida. Em homenagem à data e em memória à carreira da artista, falecida em 1982, ocorreu uma série de lançamentos. Dentre eles, a biografia "Elis Regina - Nada será como antes", assinada por Julio Maria; o primeiro site oficial, que reúne informações biográficas e os trabalhos feitos pela cantora; e um longa-metragem com direção de Hugo Prata, que aborda a segunda metade da vida da artista, a partir da chegada ao Rio de Janeiro. Para comemorar com música a efeméride, dois shows em São Paulo reuniram parceiros da cantora, como Fagner, João Bosco, Gilberto Gil, Ivan Lins e Renato Teixeira.
Ao ver essas atividades em torno da comemoração dos 70 anos de nascimento de Elis, não pude deixar de pensar justamente na relação entre a intérprete e os compositores lançados e gravados por ela. É sabido na história da música brasileira que a própria cantora saía em busca dos novos e desconhecidos compositores e "garimpava" o melhor de suas produções, como já relataram muitos desses "escolhidos".
Agora, com a comemoração dos 70 anos de Belchior, penso no encontro entre o artista cearense e a cantora Elis.
Segundo o próprio compositor, depois de ter gravado em 1972 a canção "Mucuripe", foi Elis quem o convidou para ir à casa dela, ocasião em que Belchior a apresentou "simplesmente" a totalidade de sua obra até então. Com o ouvido especial que tinha, naquela noite dos primeiros anos da década de 70, Elis escolheu para gravar as canções "Como nossos pais" e "Velha roupa colorida", que compuseram o repertório do show e do disco "Falso brilhante", de 1975 e 1976, respectivamente. No contexto do imenso sucesso obtido por "Falso brilhante", essas duas canções também foram gravadas por Belchior exatamente no ano de 1976, naquele que se tornaria a obra-prima de Belchior, tanto junto à crítica, quanto no que se refere à difusão junto ao público, o disco "Alucinação".
Essa simultaneidade de ações é bastante significativa, pois ao mesmo tempo em que o nome Belchior se apresentava na música brasileira como "compositor" de Elis Regina, ele também instituía de forma paralela sua carreira de cantor e de compositor, iniciada em disco dois anos antes com o LP "A palo seco", que não teve grande repercussão com o público, talvez por seu viés extremamente literário e concretista.
É óbvio que Belchior é e será extremamente grato à Elis pela difusão que a cantora deu à sua obra. Paradoxalmente, a força de Elis na interpretação de "Como nossos pais" foi tamanha, que deu origem ao seguinte fato: Elis impregnou de tal forma a canção de Belchior com uma marca autoral dela, como intérprete, que a autoria do compositor Belchior nessa canção ficou de certa forma escondida se considerarmos o conhecimento pelo grande público da música brasileira.
Na área musical, o que se constata, no que diz respeito à relação entre a figura do intérprete e a do compositor, é que desde o instante em que a canção é apresentada ao público, independentemente do "fracasso" ou do "sucesso" que a canção terá ao longo dos anos, é principalmente o nome do cantor que ficará e restará associado àquela música, por mais que o texto verbal e musical "canção" seja uma forma que para existir necessite do trabalho de muitos agentes (compositor, intérprete, músicos etc.). E é exatamente por isso que uma grande parte do público ouvinte acredita que a canção "Como nossos pais" é a "canção da Elis Regina", sem se lembrar do nome do verdadeiro autor da canção, Belchior. Se a Internet simboliza o apagamento da autoria de modo geral, o fenômeno também atinge a música brasileira. Qualquer pesquisa rápida na rede mostrará, equivocadamente (?), que "Como nossos pais" é uma música de Elis Regina.
Mas para além dessa ocultação da autoria, bastante comum na música brasileira, com relação à parceria entre o compositor Belchior e a intérprete Elis, coloco as seguintes questões:
1) Até que ponto a cantora consagrada deu voz ao desconhecido compositor?
2) Até que ponto o desconhecido compositor alimentou a voz da cantora consagrada?
A interação entre os papéis de Elis e de Belchior só pode ser entendida por meio de uma simbiose na qual e pela qual essas duas instâncias (intérprete e compositor) vivem juntas e imbricadas e se beneficiam mutuamente. Nesse sentido, o reconhecimento de Belchior à Elis é plenamente compreensível, pois de fato a dicção singular da cantora deu a Belchior "a oportunidade e o direito de se manifestar, ou de continuar se manifestando, enquanto autor" na música brasileira.
Mas por outro lado, Belchior também deu à Elis "a chance de aquela cantora e nenhuma outra poder cantar e mostrar primeiro um universo igualmente singular", qual seja, um mundo até então novo na música do País, que só pode ser apreendido pelo conjunto da obra de Belchior, autor de mais de 300 composições lançadas em 11 discos autorais e inúmeros outros trabalhos. E Elis Regina sabia disso. Ao escolher “Como nossos pais” (e também "Velha roupa colorida" e "Mucuripe"), Elis percebeu toda a força que aquela canção possuía, potência essa que a interpretação da cantora só veio a intensificar, gerando a partir daí uma das maiores "arquicanções" da música brasileira de todos os tempos.
Assim, não foi novidade nenhuma a divulgação pelo Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) em 2015 de um ranking mostrando as canções interpretadas por Elis mais tocadas nos últimos anos, no qual "Como nossos pais" aparece como a primeira da lista.
Elis Regina soube disso desde que ouviu a canção pela primeira vez. Belchior sabia disso desde que a compôs.
Josy Teixeira é professora, radialista e pesquisadora de música popular e da obra de Belchior. josyteixeira@usp.br
Se você vier me perguntar por onde anda "o Belchior"... (Por Josy Teixeira)
Antônio Carlos Belchior nem precisaria ter acrescentado o Gomes Fontenelle Fernandes ao seu nome de batismo para se tornar um grande nome da música. A obra de Bel seria suficiente por colocar o artista no panteão da MPB.
"– Olá, professora, alguma notícia do Belchior?". Essa é a pergunta que ouço desde a divulgação pela grande mídia do "desaparecimento" de Belchior. Em 23 de agosto de 2009, o Programa semanal "Fantástico" contou a todo o Brasil o que as pessoas mais próximas a Belchior já sabiam havia alguns anos. "Belchior tinha sumido!".
Depois da matéria da Globo, procuram-me frequentemente, como pesquisadora do cancioneiro do artista, querendo saber por onde anda Belchior. São "tête-à-têtes", telefonemas e e-mails de diferentes pessoas de várias partes do Brasil e até de outros países: jornalistas e radialistas dos meios mais prestigiados aos menos difundidos, fãs, curiosos e interessados em geral pela obra de Belchior.
Considerando o seu afastamento social, é plenamente compreensível esse reiterado interesse sobre o paradeiro ou sobre o percurso atual de um dos artistas mais importantes da música brasileira.
Pensando em como responder à indagação de "onde está Belchior", reflito aqui sobre quem é Belchior, entendendo a "identidade" do cantor e compositor cearense numa acepção bem geral encontrada em Houaiss, como o "conjunto de características que distinguem uma pessoa e por meio das quais é possível individualizá-la".
A compreensão daquilo que intitulamos "o Belchior" pode ser visualizada pela relação entre três papéis (segundo nos ensina o teórico francês Dominique Maingueneau em "O discurso literário" de 2006, livro que descreve as diversas instâncias constituintes da figura do autor).
O primeiro deles refere-se ao "compositor" Belchior enquanto sujeito que definiu uma trajetória profissional na música brasileira; aquele que compôs uma das canções mais emblemáticas da MPB, como é o caso de "Como nossos pais";
"Se Belchior continua presente enquanto compositor e em cada um dos personagens criados em suas músicas, "o Belchior" nunca desapareceu". Josy Teixeira (professora e pesquisadora).
O segundo papel refere-se aos diversos "eus personagens" presentes no interior dos textos das canções de Belchior; todos aqueles que representam por exemplo a trajetória de milhares de nordestinos que deixaram seu lugar natal em busca de melhores condições na cidade grande, o que encontramos em "Fotografia 3x4" e "Tudo outra vez";
O último refere-se "à pessoa" Belchior, enquanto ser dotado de um estado civil e de uma vida privada, ou seja, aquele jovem que abandonou a faculdade de Medicina na Universidade Federal do Ceará para seguir a carreira de músico no eixo Rio-São Paulo.
Esses 3 elementos que formam "o Belchior" não podem ser isolados, pois cada um deles está atravessado pelos outros. Isso implica que o ato de compor uma canção só é possível porque um dado indivíduo ("a pessoa Belchior") se posiciona como fazedor de canções ("o compositor Belchior") e para tanto se vale da vida de "seus personagens".
A partir dessa classificação, pode-se considerar então que tanto "o compositor Belchior", quanto os seus "eus personagens" permanecem presentes cada vez que um de nós canta ou ouve qualquer uma das mais de 100 músicas gravadas nos 11 discos de carreira de Belchior, de "A palo seco" a "Baihuno". Afinal, será impossível fazer desaparecer da história da música brasileira o percurso fundado pelo artista que ficou conhecido no Brasil inteiro como um dos principais integrantes do Pessoal do Ceará, junto com Fagner e Ednardo, bem como não há como extinguir de nossas vidas sujeitos que tanto nos identificam, como "o rapaz latino-americano sem dinheiro no banco" ou "aquele que tem medo de avião".
Se Belchior continua presente enquanto compositor e em cada um dos personagens criados em suas músicas, nesses dois sentidos "o Belchior" nunca desapareceu. No entanto, nós continuamos querendo saber por onde anda aquele cantor de vasto bigode, que cantava de forma fanhosa e que dançava nos palcos; onde está aquele que tinha a mesma energia ao cantar para poucos ouvintes ou para milhares.
Isso significa que, na constituição do "todo Belchior", falta um forte elemento, que se refere ao homem real, de carne e osso, à pessoa de Belchior, ao Bel: aquele que descansava em uma pousada do Uruguai e que caminhava pelas ruas de Porto Alegre; aquele que ria gostosamente e que falava apaixonadamente; aquele que contava piadas, que falava várias línguas e que sabia tudo de literatura universal; aquele que adorava um bom vinho e que não dispensava uma rúcula com tomate seco; aquele que era viciado em quadros e dominava todos os assuntos; aquele que...
É desse Belchior também que muitos sentem falta. E é exatamente a ausência desse Belchior que faz com que seus admiradores (os íntimos e os mais longínquos) sintam um enorme vazio, mesmo que suas canções possam estar e continuar sempre presentes.
Por isso, ecoando o sentimento de todos aqueles que me perguntam regularmente se tenho novidades sobre "o Belchior" e que gritam em uníssono "Volta, Bel!", eu digo:
– Sim, Belchior, nós nos importamos! Todos estão esperando "o fim do termo saudade como um charme brasileiro de alguém sozinho a cismar".
Enquanto Belchior silencia, cada um dos seus admiradores e amigos está cantando: "Agora eu quero tudo. Tudo outra vez..."
Josy Teixeira é professora, radialista e pesquisadora de música popular e da obra de Belchior. josyteixeira@usp.br
O segundo papel refere-se aos diversos "eus personagens" presentes no interior dos textos das canções de Belchior; todos aqueles que representam por exemplo a trajetória de milhares de nordestinos que deixaram seu lugar natal em busca de melhores condições na cidade grande, o que encontramos em "Fotografia 3x4" e "Tudo outra vez";
O último refere-se "à pessoa" Belchior, enquanto ser dotado de um estado civil e de uma vida privada, ou seja, aquele jovem que abandonou a faculdade de Medicina na Universidade Federal do Ceará para seguir a carreira de músico no eixo Rio-São Paulo.
Esses 3 elementos que formam "o Belchior" não podem ser isolados, pois cada um deles está atravessado pelos outros. Isso implica que o ato de compor uma canção só é possível porque um dado indivíduo ("a pessoa Belchior") se posiciona como fazedor de canções ("o compositor Belchior") e para tanto se vale da vida de "seus personagens".
A partir dessa classificação, pode-se considerar então que tanto "o compositor Belchior", quanto os seus "eus personagens" permanecem presentes cada vez que um de nós canta ou ouve qualquer uma das mais de 100 músicas gravadas nos 11 discos de carreira de Belchior, de "A palo seco" a "Baihuno". Afinal, será impossível fazer desaparecer da história da música brasileira o percurso fundado pelo artista que ficou conhecido no Brasil inteiro como um dos principais integrantes do Pessoal do Ceará, junto com Fagner e Ednardo, bem como não há como extinguir de nossas vidas sujeitos que tanto nos identificam, como "o rapaz latino-americano sem dinheiro no banco" ou "aquele que tem medo de avião".
Se Belchior continua presente enquanto compositor e em cada um dos personagens criados em suas músicas, nesses dois sentidos "o Belchior" nunca desapareceu. No entanto, nós continuamos querendo saber por onde anda aquele cantor de vasto bigode, que cantava de forma fanhosa e que dançava nos palcos; onde está aquele que tinha a mesma energia ao cantar para poucos ouvintes ou para milhares.
Isso significa que, na constituição do "todo Belchior", falta um forte elemento, que se refere ao homem real, de carne e osso, à pessoa de Belchior, ao Bel: aquele que descansava em uma pousada do Uruguai e que caminhava pelas ruas de Porto Alegre; aquele que ria gostosamente e que falava apaixonadamente; aquele que contava piadas, que falava várias línguas e que sabia tudo de literatura universal; aquele que adorava um bom vinho e que não dispensava uma rúcula com tomate seco; aquele que era viciado em quadros e dominava todos os assuntos; aquele que...
É desse Belchior também que muitos sentem falta. E é exatamente a ausência desse Belchior que faz com que seus admiradores (os íntimos e os mais longínquos) sintam um enorme vazio, mesmo que suas canções possam estar e continuar sempre presentes.
Por isso, ecoando o sentimento de todos aqueles que me perguntam regularmente se tenho novidades sobre "o Belchior" e que gritam em uníssono "Volta, Bel!", eu digo:
– Sim, Belchior, nós nos importamos! Todos estão esperando "o fim do termo saudade como um charme brasileiro de alguém sozinho a cismar".
Enquanto Belchior silencia, cada um dos seus admiradores e amigos está cantando: "Agora eu quero tudo. Tudo outra vez..."
Belchior - MPB Especial (02/10/1974)
Belchior ao Vivo no Pelourinho na Bahia (1998)