Passados os primeiros 100 dias de seu governo, o governador Jerônimo Rodrigues deu o primeiro sinal de que não pretende dar sequência, em sua gestão, à política de segurança pública de seu antecessor, orientada pelo bolsonarista conceito de que bandido bom é bandido morto – e que, como não podia deixar de ser, posta em prática ao longo de dois mandatos, ceifou a vida de dezenas de inocentes como efeito colateral da escalada que assegurou à polícia da Bahia o pouco honroso título de vice-campeã nacional de letalidade.
Na quarta-feira, o Diário Oficial do Estado publicou aviso de licitação para implantação de sistema de processamento (captação, transmissão, armazenamento, gestão e custódia) de imagens obtidas por câmeras corporais acopladas às fardas dos policiais baianos.
As câmeras corporais, como sabe o esclarecido leitor, gravam imagens das ações policiais e transmitem os dados para uma central digital. Tudo é registrado automaticamente, o que permite o acompanhamento das ações em tempo real e também o armazenamento das imagens na nuvem para posterior consulta.
O uso das câmeras tem enfrentado resistência dentro da própria polícia. Ao determinar a adoção do sistema, o governador dá um passo enorme para fazer com que a Bahia perca a nada louvável posição de vice-campeão nacional em letalidade policial. Em 2021, o Estado registrou 1.013 mortes por intervenção policial, perdendo apenas para o Rio de Janeiro, que somou 1.356. As mortes por policiais na Bahia representaram 15% de todas as mortes violentas intencionais ocorridas no Estado naquele ano.
O uso de câmeras corporais nos uniformes de policiais militares de São Paulo resultou em uma queda de 57% no número de mortes decorrentes de ações policiais em relação a unidades onde ainda não houvera a implantação desse tipo de tecnologia, de acordo com um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgado no final do ano passado.
Os especialistas consideram a medida fundamental para a redução da letalidade policial e para a proteção do próprio agente de segurança. Isso com impacto direto na própria instrução processual, que ao invés de contar apenas com a declaração dos policiais envolvidos no episódio, como ocorre hoje, terá também a gravação em áudio e vídeo do que realmente aconteceu.
Enquanto as câmeras não forem utilizadas, veremos, como ocorreu na sexta-feira 14, a história se repetindo, sempre com o mesmo trágico e batido roteiro: apanhado em meio a uma operação policial, por volta do meio-dia, quando voltava para casa, em uma comunidade pobre encravada no Costa Azul, bairro de classe média de Salvador, um jovem foi atingido por três tiros e morreu.
Os policiais apresentaram o relatório padrão: foram atacados por um grupo de homens armados quando faziam uma ronda no local e reagiram. Quando o tiroteio cessou, encontraram o jovem e outro homem baleados. Nenhum deles chegou com vida no hospital. Com eles foram encontrados, segundo a polícia, um revólver, uma pistola e porções de maconha e cocaína.
A família e vizinhos do jovem Igor Santos Brito, de 29 anos, reagiram e disseram que a polícia entrou na comunidade atirando. Negaram que o jovem tivesse envolvimento com o tráfico de drogas. Igor tinha cinco filhos, trabalhava como operador de carga em uma empresa de logística pela manhã e à noite estudava em uma faculdade privada.
Se os policiais estivessem usando as câmeras corporais, as imagens obtidas desde o primeiro momento – as câmeras são ativadas assim que os policiais atendem a um chamado da central de operações ou quando entram em ação por iniciativa própria – atestariam a licitude da operação, sanando qualquer dúvida posterior, ou apontariam eventuais irregularidades.
Ao determinar o uso das câmeras corporais, o governador, que é o comandante das forças policiais estaduais, contribui para a proteção dos agentes de segurança sob sua responsabilidade e para tornar mais rigoroso o respeito aos direitos humanos nas operações da polícia.
A medida também contribui para que o atual governador não tenha de carregar na consciência a morte de pessoas inocentes ou ser lembrado a todo momento de sua responsabilidade nesse processo, como ocorre ainda hoje com seu antecessor, cobrado sobretudo pela chacina de 12 jovens mortos a tiro durante uma ação policial no bairro do Cabula, na capital, num episódio que alcançou repercussão internacional.
José Carlos Teixeira é jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político pela Universidade Católica do Salvador.