Se certo machismo é algo “naturalizado” na PM devido a um tipo de masculinidade cultuada por seus profissionais, nessas tropas, em particular, as experiências cotidianas ressaltam que é preciso demonstrar muita resignação e autossuperação para ser mulher e ingressar em uma tropa de choque.
Como sabemos, no Brasil, as instituições policiais militares (PMs) foram criadas ainda no século XIX de acordo com um projeto político de viés moderno, porém sustentado por uma ideologia liberal-conservadora e autoritária, tendo em vista que estávamos ainda no período escravocrata e éramos dirigidos por uma elite de homens brancos e de perfil aristocrático. Isso significa dizer que o olhar da suspeição contra os negros em nossa sociedade por parte das PMs tem raízes profundas e históricas e que a atuação dessas instituições sempre esteve caracterizada por um ethos masculino, cuja presença feminina só veio ocorrer a partir de 1955 no estado de São Paulo para, depois, gradativamente, alcançar todas as PMs. De todo modo, ainda hoje algumas PMs reservam uma cota de vagas diminuta para as mulheres em seus concursos de ingresso na Corporação, enquanto outras instituições como a Polícia Federal ou a Polícia Rodoviária Federal usam da ampla concorrência para atender às suas necessidades de pessoal.
Outro dado a ser apontado é que, quando do ingresso nas PMs, homens e mulheres são socializados por meio da aprendizagem dos valores e diretrizes que norteiam a cultura organizacional PM, com forte centralização dos elementos militares durante o curso de formação e, após formados, quando conhecem o trabalho das ruas, temos o destaque para o lado policial da profissão. Após essa fase, são realizados alguns cursos pelas PMs para o ingresso de novos integrantes em suas tropas especiais e especializadas, aquelas que, em conjunto, formam os Batalhões de Operações Policiais Especiais (BOPE), unidades que se tornaram conhecidas após episódios como o sequestro do ônibus 174 e, posteriormente, pelo sucesso obtido pelos filmes “Tropa de elite” em suas duas versões.
É exatamente para o processo de ingresso de mulheres no policiamento de choque, considerado um tipo de policiamento especializado, que despertamos nosso olhar nestas reflexões, pois, se certo machismo é algo “naturalizado” nas instituições PM de modo geral devido a um tipo de masculinidade cultuada por seus profissionais (inclusive por algumas mulheres que defendem esse ethos masculino como forma de serem aceitas pela maioria masculina), nessas tropas em particular, as experiências cotidianas ressaltam que é preciso demonstrar muita resignação e autossuperação para ser mulher e ingressar em uma tropa de choque, ou melhor, tornar-se “choqueana”.
O policiamento de Choque é uma atividade de enfrentamento de manifestações de massa. As PMs usam o termo “policiamento ostensivo” e outras variantes para lidar com o enfrentamento “comum” das ocorrências, podendo aquele ser realizado para o acompanhamento inicial de um evento de protesto, porém, a partir do momento em que os policiais da tropa de choque entram em ação, esse tipo de policiamento passa a ser institucionalmente denominado de “controle de distúrbio civil”, ou ainda “operações de choque”. Essa estruturação de fases de ação já nos leva a pensar que deva existir uma diferenciação quanto aos policiais escolhidos para atuar no Choque, bem como quanto ao uso dos tipos de armamento e equipamentos.
Em relação à chegada de mulheres na Tropa de Choque da PMPB, local de atuação de ambos os autores deste texto, as experiências profissionais vivenciadas pela autora à época servem de referência para compreendermos a dinâmica da presença feminina nesse espaço profissional. Em algumas ocasiões foi escutado de pessoas de dentro da tropa o seguinte: “Ninguém sabia do seu interesse em servir no Choque, você chegou de paraquedas, duas mulheres oficialas na tropa era demais, alguém devia sair”. Essas colocações não faziam o menor sentido para uma aspirante que chegava transferida do sertão do Estado para a capital em 2008. Afinal, eu só queria trabalhar no Choque e tinha respondido “sim” quando perguntada se queria ir trabalhar no Pelotão de Choque pelo então Comandante-Geral da Polícia Militar. Confesso que o “sim” saiu sem nenhuma reflexão, foi instintivo, nunca tive planos quanto a isso.
Não entendia como funcionavam as “tradições” da tropa, não conhecia os oficiais que lá estavam, não havia sido convidada por eles a fazer parte do grupo, só não sabia que tinha que ser aprovada antes. Então, estigmatizada de “X9”[1] do Comandante-Geral, comecei a caminhar quase como uma invisível em meio aos que usavam a farda rajada, uniforme típico dos que trabalhavam na Unidade de Choque. Eu ainda não podia, tinha que usar a farda cáqui, a utilizada pelo policiamento convencional. Isso me fazia lembrar todos os dias que eu ainda não era um deles.
O imaginário construído em torno do policial que trabalha na Tropa de Choque remonta à força e à coragem, atributos muitas vezes negados à mulher. É como se fosse a reconstrução de um arquétipo do que poderíamos considerar um novo “soldado romano”, não mais aquele que usava elmos e armaduras de ferro na antiguidade, mas capacetes antitumulto e coletes balísticos.
Percebemos que a mulher choqueana acredita que é aprovada através de suas ações, de sua postura frente às ocorrências, que ao demonstrar coragem prova então seu valor e passa a ser enxergada de forma diferente pelo grupo masculino. Segundo Bourdieu (2019), para fazer parte do mundo dos homens não se pode demonstrar fraqueza, eles devem ser duros para com o próprio sofrimento e sobretudo para com o dos outros. Os atos de coragem chegam a ser muitas vezes inconsequentes, visto que a virilidade é construída diante de outros homens e para outros homens, negando-se a feminilidade. Ainda segundo Bourdieu (2019), as aptidões nobres como coragem e virilidade são aceitas no mundo como privilégio masculino, como uma inculcação social, que se torna um habitus, uma lei social incorporada e depois naturalmente reproduzida e externalizada. Logo, podemos pensar que ser mulher no Choque é uma situação conflituosa, é estar e não pertencer, um verdadeiro paradoxo.
Percebemos que a construção social que evoca características físicas existentes no plano biológico como argumento para distinções, e, para demarcação de interdições, funções, lugares e posturas sociais entre homens e mulheres se faz presente no cotidiano da Tropa de Choque de forma velada, pois as mulheres podem fazer parte do efetivo, podem vestir a farda da Unidade, podem trabalhar no dia a dia; porém cada uma que aceita ingressar nesse ambiente acaba percebendo que necessita da aprovação da maioria masculina do efetivo para permanecer.
Quanto às justificativas para o ingresso da mulher e as atividades a elas atribuídas, geralmente se demonstra de forma clara o lugar do policial masculino e da policial feminina; esta seria o complemento do primeiro, buscando o que seria apropriado à mulher dentro da instituição fazer ou não, até onde ela poderia chegar. Nas instituições que se utilizam do monopólio da violência, a posição da mulher é inferiorizada, deve ser um suporte para o desenvolvimento do homem. Percebe-se uma dominação simbólica, sutil, quase que invisível às vítimas, por se tratar de uma construção social, o que se traduz em uma dominação masculina, segundo a perspectiva bourdieusiana.
[1] “Dedo duro”, informante de alguém.
REFERÊNCIAS
BRIANNA OLIVEIRA PALITÓ - Especialista e bacharela em Segurança Pública pelo Centro de Educação da PMPB. Capitã da PMPB.
FÁBIO GOMES DE FRANÇA - Pós-doutor em Direitos Humanos, doutor e mestre em Sociologia pela UFPB. Capitão da PMPB.