Segundo a teoria dos ciclos de políticas, um problema se torna público quando existe uma distância entre como a situação está e como a sociedade gostaria que estivesse. Além disso, é necessário que o problema seja percebido, definido e uma avaliação de solução seja pensada. Os próximos passos são: o problema entrar no debate público, desenho de alternativas e decisões do gestor público pelas mais viáveis.
Trazendo essa teoria para a prática, será que a Cracolândia na cidade São Paulo é um problema para a sociedade? Se é um problema, onde estão as soluções? Basta acompanharmos os noticiários para saber que os gestores nacionais, paulistas e paulistanos vivem falando, inventando e implementando soluções para a Cracolândia…toda ela? Parte dela? Qual Cracolândia?
A Cracolândia mais famosa é a da Segurança Pública: todos os seus membros são suspeitos de furtos, roubos, tráfico e saques. No caso do tráfico, ou são usuários ou são traficantes. As polícias atuam como podem: pressionando seus policiais com cobrança de metas, operações sempre que possível, intensificação do patrulhamento. Quais são as políticas públicas para essa Cracolândia? Mais patrulhamento, mais investigações, mais policiais? Conforme todos os estudos do mundo sobre a Guerra às Drogas, é mais uma frente de batalha na qual as drogas estão invictas.
A segunda Cracolândia é a da Saúde Pública: “nóias”, “crackeiros”, usuários, pessoas que precisam de auxílio para sua saúde física ou mental, dependentes que precisam de tratamento e afins. Aqui temos uma atuação contínua de entidades assistenciais proprietárias de comunidades terapêuticas e políticos que querem “curar” os dependentes com internação compulsória, mesmo que não haja fiscalização, transparência e evidências que tais políticas funcionem. Quanto mais internações, mais gastos, mais “curas”, mais esta Cracolândia continua a mesma.
A Cracolândia quase esquecida é a Cracolândia da Assistência Social: esta classificação envolve pessoas que estão passando fome, insegurança alimentar, problemas familiares, em situação de rua, sem-teto, desempregadas e outras. Ela não dá audiência como a da Segurança Pública, não utiliza tantos aportes orçamentários como a aprisionadora compulsória da Saúde Pública e as entidades assistenciais nessa Cracolândia são aquelas que, por exemplo, doam pratos de comidas (que serão distribuídos ou não, dependendo do humor da fiscalização da subprefeitura).
A Cracolândia menos lembrada é a Cracolândia do Urbanismo. Note-se que não é esquecida pelos problemas decorrentes dela, como a falta de moradia, limpeza e atividade comercial. Ela é esquecida pela ausência de propostas para ela: qual é a região central que queremos? Qual o tipo de função, residencial, comercial ou mista, que deve ser estimulada? Para quem não conhece a região ou o histórico dela, podemos resumir assim: era uma área onde se concentravam as produtoras de filmes de baixo orçamento que aproveitavam a estrutura de transportes da região (trem e, à época, a rodoviária na praça Júlio Prestes) para distribuir os filmes e, desde que tal atividade desapareceu, decorrente do avanço tecnológico, nenhuma outra atividade foi desenvolvida na região. Para quem ainda não entendeu, estamos falando de uma região na área central da capital de São Paulo com estrutura de moradia, água, esgoto, eletricidade e transporte completa: metrô, ônibus, trem e pouco trânsito de veículos, comparando com áreas de trânsito mais intenso, e que nenhum ente governamental pensou numa política urbanística, preferindo deixar subutilizada, abandonada, sem nenhuma ideia de desenvolvimento. É uma área morta para políticas públicas, onde o funeral dura décadas.
Cabem diversas discussões diante dessa “divisão” praticada na Cracolândia. Vamos destacar apenas uma: o destinatário das políticas públicas na região.
Conforme vimos nas “várias” Cracolândias, cada uma tem sua própria forma de classificar os seus frequentadores. Isso pode facilitar a vida da burocracia de médio escalão envolvida em cada uma, porém não existem “várias” Cracolândias. É uma só.
Um exemplo comum: a mesma pessoa que frequenta a Cracolândia (faz parte do fluxo) pode ser usuária (para a Segurança Pública, ela compra drogas dos traficantes e pode vir a se tornar um deles); ter transtornos psíquicos (para a ala dominante e contra a reforma psiquiátrica em vigor há 22 anos, a função da Saúde Pública é internar essas pessoas, não tratar); receber algum auxílio financeiro do governo, como benefícios previdenciários ou assistenciais, e, apesar de ter moradia em outra região, não possui condições de conviver com sua família (levantamento da Assistência Social). Qual a Cracolândia “ideal” para enquadrar essa pessoa? Qual a prioritária? Qual resolverá o problema? Qual a política urbanística para essa pessoa?
Por fim, devemos ressaltar que não tivemos a intenção de criticar os burocratas da linha de frente, como policiais, profissionais da saúde, guardas municipais e assistentes sociais, que dia e noite apenas recebem as determinações para lidar com a Cracolândia e precisam cumprir essas determinações como for possível. O problema está na burocracia de alto escalão, no nível político, e no debate público.
O debate público é contaminado pelos atores políticos e do terceiro setor envolvidos em “cada” Cracolândia: secretários governamentais que não querem dialogar com outros secretários governamentais (para não dividir os possíveis louros das pequenas vitórias); alguns setores da imprensa que preferem não se aprofundar no assunto e levam para a população apenas a visão de maior audiência (como é o caso da Cracolândia da Segurança Pública), fazendo a população acreditar que é a única forma de lidar; organizações do terceiro setor ou de saúde que recebem valores exorbitantes e, por vezes, sem a devida fiscalização para “internar” ao máximo os “dependentes”, e não seguir a política antimanicomial determinada pela reforma psiquiátrica.
No nível político, a cobrança da sociedade precisa ser contínua e qualificada: não pode ser tolerado que um problema multifatorial e transdisciplinar seja levado de forma simplória pelos políticos dos entes governamentais envolvidos. Não cabe tratar com amadorismo um problema que afeta todas as pessoas da região, frequentadoras ou não do fluxo da Cracolândia. Essa mediocrização dos debates e propostas de políticas serve apenas para reforçar preconceitos e deixar de ter a cobrança de responsabilidades.
LÍVIO ROCHA - Investigador de Polícia desse 1999, membro e conselheiro fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Doutorando em Políticas Públicas pela UFABC e morador da região central da capital paulistana desde que nasceu.