Há tempos temos estudado o suicídio policial. A cada novo caso, cresce o anseio da sociedade em compreender o que vem ocorrendo nas instituições de segurança pública brasileiras. Nossas respostas, quase sempre, são colocar novas perguntas. Em paralelo às reflexões das consequências das extensivas jornadas de trabalho, das relações internas e externas nem sempre pautadas por respeito e das condições nem sempre favoráveis de trabalho, somos desafiados pela dificuldade de se obter os dados que nos ajudariam a entender a magnitude do problema.
Foi nesse percurso de buscas por alternativas criativas para compreender os suicídios nas instituições de segurança pública que desde 2017 passamos a monitorar as mortes publicadas na mídia local e/ou nacional. Essa estratégia nos mostrou um outro dado ao qual ainda não estávamos atentas: os casos em que os profissionais tiravam a vida de outras pessoas antes de tirar a de si próprios.
Aprendemos que aquelas mortes que pareciam isoladas se repetiam mês a mês e ano a ano. Encontramos 12 casos em 2021, 11 em 2020, 16 em 2019 e 5 em 2018. Embora existam poucos estudos sobre o tema no Brasil, não apenas entre os profissionais de segurança pública, mas entre a população em geral, estudos internacionais (KLINOFF; VAN HASSELT; BLACK, 2015; VIOLANTI, 2007) nos ajudaram a analisar esses casos com mais precisão.
A principal dificuldade de se pesquisar esse tema- no Brasil e no mundo- reside na classificação das mortes. Os homicídios seguidos de suicídio são notificados como dois fenômenos isolados: de um lado como homicídio e, de outro, um suicídio, o que nos dificulta dimensionar a gravidade do fenômeno.
Uma revisão de literatura pioneira, realizada pelo professor Gláucio Soares (2002), demonstrou que os homens são a ampla maioria dos autores dos homicídios, e as mulheres e crianças a ampla maioria das vítimas dos homicídios. Além disso, que usualmente existe vínculo familiar entre as vítimas, porque as mulheres, em sua grande maioria, são vítimas de maridos, amantes, companheiros e namorados, e as crianças são vítimas dos seus pais ou dos parceiros (as) deles. Essa tese foi testada e confirmada por Steven Stack (1997), que, com dados de Chicago (EUA), apontou o homicídio seguido de suicídio como um crime de gênero.
Nosso levantamento vai na mesma direção das pesquisas internacionais. Em 2021, entre as 13 vítimas de homicídio, 11 eram do sexo feminino e 10 possuíam vínculo afetivo anterior ou atual com a vítima do suicídio. Em consequência disso, passamos a analisar essas mortes como feminicídio seguido de suicídio. Parte considerável dos casos analisados ao longo desses anos aponta que já havia histórico de violência doméstica na família e em alguns deles até medida protetiva contra o autor do feminicídio.
Além dos familiares- embora em menor escala- também encontramos casos em que os policiais tiraram a vida de colegas de trabalho ou de outras pessoas. Enquanto escrevíamos esse texto, um policial militar em Belém tirou a própria vida após ter se dado conta que havia atropelado uma pessoa idosa. Anos atrás, outro policial militar tirou a própria vida ao perceber que havia disparado erroneamente contra uma pessoa. Novamente, apesar da carência dos dados, o pouco que temos disponível já nos mostra que não se trata de casos isolados.
Dessa vez, além de colocar novas perguntas, reforçaremos a necessidade da inclusão do tema da violência doméstica no desenvolvimento de pesquisas e ações de prevenção do suicídio e de promoção da saúde mental. Defendemos novamente o nosso bordão de que é preciso “conhecer para prevenir”, estimulando a realização de pesquisas comprometidas em compreender esse fenômeno. As ações de promoção da saúde mental na segurança pública protegem não apenas os agentes, mas também seus familiares e a população.
FERNANDA CRUZ - Socióloga, doutora em Sociologia pelo IESP-UERJ, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), pesquisadora e Coordenadora Adjunta em Ensino e Pesquisa do IPPES.
DAYSE MIRANDA - Socióloga, doutora em Ciência Política pela USP e Presidente do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES).