ARTICULISTAS UMA TRAJETÓRIA
O QUE É “TRABALHO DE POLÍCIA”? UMA TRAJETÓRIA FEMININA NA POLÍCIA JUDICIÁRIA
Tenho muita esperança de que, em breve, o gênero não seja um obstáculo para realização do trabalho policial, mas sei que essa é uma luta para todas e todos.
06/06/2023 11h48
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br

Meu nome é Andrea Guirra, sou casada com o professor Frederico Guirra, mãe de Frederico Filho, Felipe e Davi. Sou policial civil em Barra do Garças/MT há 16 anos. Em 2005, estudando para concurso público, surgiu a oportunidade de tentar ingressar na Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso. Como não me sentia preparada para fazer a prova para delegada, decidi me inscrever para vaga de investigadora de polícia.

Entretanto, fui aconselhada pelo meu sogro, Dr. Aldemar Guirra (in memorian) a fazer o concurso para escrivã de polícia, pois, na visão dele (de delegado aposentado, ex-secretário de segurança pública de Mato Grosso) não seria “tão perigoso, pois não teria que sair da delegacia”. Isso não me convenceu e segui meu plano de ser investigadora. Fui aprovada e fiquei muito bem classificada no Curso da Academia de Polícia, o que me proporcionou escolher ser lotada na minha cidade de origem. Já em Barra do Garças, cidade do interior do MT, com aproximadamente 60 mil habitantes, na divisa com Goiás, fui designada para trabalhar na Delegacia Especializada de Defesa da Mulher (DEDM). No primeiro momento, não gostei da escolha em razão da especialidade da delegacia. Crimes de violência contra a mulher não eram a área na qual gostaria de trabalhar. A impressão que se tinha à época era de que “não era trabalho de polícia”. Entretanto, percebi que era bom, sim, trabalhar com esses crimes, que não era esse o problema da delegacia. Na verdade, havia um estigma, pois, os servidores e servidoras dessa delegacia e de outras delegacias a viam assim. A Lei Maria da Penha era muito recente e não se tinha um procedimento padrão para os atendimentos. As vítimas não sentiam segurança, não se sentiam acolhidas, e não confiavam no serviço prestado.

Dois anos depois, fui transferida para a 1ª Delegacia de Polícia de Barra do Garças, para trabalhar na investigação de crimes como tráfico de drogas e homicídio. Eu me apaixonei por esse novo desafio. Tínhamos uma equipe unida, determinada e muito dedicada. Conquistei um lugar muito almejado dentro da delegacia, fizemos grandes operações, inúmeras prisões. Uma dessas operações foi marcante, por se tratar de uma investigação sobre uma rede de prostituição organizada e chefiada por um taxista. A partir de uma denúncia, com o apoio do Núcleo de Inteligência, começamos a monitorar os passos do taxista e descobrimos seu método de trabalho. Ele recebia as ligações dos supostos clientes, marcava local e horário para entregar a garota escolhida, cobrava o valor do programa e da corrida do táxi. As garotas ficavam com uma pequena parte do dinheiro. E os clientes não tinham acesso ao endereço das garotas. Havia, também, a conivência de alguns hotéis da cidade, que mantinham em sua recepção álbum com fotos das garotas. Foram meses de trabalho, com vigilância de manhã, à tarde e à noite, pois não havia horário específico para os encontros. Homens que se passavam por pessoas bem sucedidas, bem casadas, acima de qualquer suspeita, estavam envolvidos. Durante as investigações tivemos vários momentos difíceis, como profissional, como ser humano, como mulher. Em uma das conversas interceptadas (com autorização judicial), ouvimos um cliente e o taxista se referirem a uma menina como “bezerrinha de treze arrobas”, o que, na verdade, significava a idade dela. O taxista também revelou fazer um “test drive” com as garotas, para saber se elas realmente eram “apropriadas” para o serviço. No dia da prisão, logo ao amanhecer, interceptamos o veículo do suspeito no centro da cidade. Quando demos voz de prisão, ele quase desmaiou. A surpresa foi grande demais. Ao mesmo tempo, outras equipes buscavam os clientes e as meninas, como o apoio do Conselho Tutelar. Na delegacia, ouvindo as garotas, vítimas de muitos tipos de violência, percebemos o quão profundos eram os abusos sofridos. Uma delas, que foi vítima de violência física num desses encontros, achava que o taxista era como um pai, que lhe dava até material escolar. A menina de treze anos foi vítima de estupro de vulnerável por parte do taxista também. Todas as meninas tinham, em comum, uma péssima situação financeira. Ao fim, houve a devida responsabilização dos indivíduos.

Toda essa dedicação ao trabalho, toda a tentativa de não ser discriminada por ser mulher numa equipe que só tinha homens (dentro da equipe, isso não era problema), me custou uma mudança de postura na qual fui masculinizada, fui obrigada a assumir uma condição de igualdade sem pensar nas peculiaridades de cada um.  Nesse tempo, fiquei grávida pela segunda vez depois de me tornar policial. Foi o suficiente para alguns colegas me tratarem de forma diferente, com brincadeiras do tipo “entrou para polícia para engravidar e ficar em casa”. Toda a minha dedicação e profissionalismo foi posta à prova (não por todos, claro, pois minha equipe foi compreensiva, assim como meu chefe). Quando voltei da licença maternidade, tive que me esforçar em dobro para, novamente, provar meu valor.

Alguns anos depois, precisei voltar para a DEDM. Dessa vez, com mais experiência e com outro olhar sobre violência contra a mulher, comecei a participar da recém-lançada “Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica contra a Mulher”. A Rede fez uma capacitação sobre atendimento humanizado e outros assuntos pertinentes à violência. Eis que, naquele momento, se iniciava uma mudança geral na percepção do que é uma delegacia especializada nesses crimes. Foi um tempo de aprendizado e mudanças, até mesmo na forma de pensar e trabalhar o enfrentamento à violência contra a mulher. Porém, meu “status” de investigadora mudou para servidora da DEDM. Anos depois de sofrer discriminação por ser mulher, sofri por estar numa delegacia de defesa da mulher.

Dessa vez, com toda a mudança que vinha acontecendo na estrutura da delegacia, no atendimento e na capacitação dos servidores, nos foi dada a possibilidade de fazermos nossas próprias investigações. Com isso, ganhamos respeito, ânimo para trabalhar, visibilidade no cenário municipal, estadual e nacional (a Rede de Frente ganhou o prêmio Selo FBSP de práticas inovadoras no enfrentamento à violência contra a mulher, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Mas o mais importante foi ganhar a confiança das vítimas. Conseguimos, em parceria com a Rede de Frente, diminuir a cifra oculta e aumentar a quantidade de denúncias, diminuir os números de feminicídio, diminuir a reincidência, entre outros resultados.

Reconheço em minha trajetória a importância de se valorizar o próprio trabalho, fazê-lo com dedicação e vontade, pois os resultados positivos sempre aparecem. Porém, temos muito a fazer, não só para combater o machismo dentro das instituições de segurança pública, mas também para valorizar o trabalho das mulheres policiais. Na minha instituição somos apenas 30% do efetivo, mesmo não tendo vagas limitadas para mulheres. Muita coisa mudou desde meu ingresso na PJC/MT. Hoje, por exemplo, temos a primeira mulher diretora geral. Tenho muita esperança de que, em breve, o gênero não seja um obstáculo para a realização do trabalho policial, mas sei que essa é uma luta para todas e todos.

ANDREA GUIRRA - Investigadora da Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso.