A investigação, principalmente de homicídio, é uma briga contra o tempo. Quanto mais demorada, mais difícil é para se chegar ao autor, porque as provas se perdem, a exemplo das testemunhas que acabam ameaçadas ou influenciadas ou mudam de endereço, além dos vestígios dos crimes que deterioram com o passar dos anos. E toda essa lentidão reflete no conjunto de atividades do Estado para apurar a existência, a autoria e a culpabilidade de infrações penais. Um exemplo do problema na Bahia é no município de Camaçari, região metropolitana de Salvador. Lá, 380 inquéritos de homicídios foram arquivados entre 2022 e maio deste ano, porque estavam parados – sem as comprovações dos autores das mortes. E o mais grave: as investigações encerradas foram iniciadas pela Polícia Civil há uma média de 10 anos.
Em 2022 chegaram à Vara do Júri e Execuções Penais da Comarca de Camaçari 180 inquéritos, dos quais 150 foram arquivados por falta de provas. Neste ano, até maio, chegaram à Vara 242 inquéritos, sendo que 230 foram igualmente encerrados pelo mesmo motivo – os dados são públicos e foram obtidos através de consulta na Vara de Execuções.
“Uma investigação tem que ser feita em meses e os primeiros dias são fundamentais. Aí deixam o inquérito andando por quatro, cinco anos a passos de tartaruga, não vai concluir. A Polícia Civil está sucateada. A gente está em 2023 e julgando processos de 2013, 2014. Essa é uma realidade das varas dos júris de homicídios de Salvador e Região Metropolitana”, declarou o juiz Waldir Viana, titular da Vara do Júri e Execuções Penais, em referência aos pouquíssimos inquéritos que viraram processos, após o Ministério Público da Bahia encontrar elementos razoáveis para a denúncia.
O Juiz Waldir Viana ingressou na magistratura em 2002. Ele trabalhou em Feira de Santana por quase seis anos e desde 2018 atua na Comarca de Camaçari. Viana conversou com exclusividade com o CORREIO na Associação dos Magistrados da Bahia (AMAB), no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA). Ele falou sobre as consequências do problema para sociedade, como o incentivo à impunidade, sobre a imagem da instituição, a falta do controla da atividade policial por parte do Ministério Público da Bahia (TJ-BA) e outros aspectos. Confira a entrevista agora.
Por que inquéritos instaurados há anos permanecem ainda nas delegacias ou departamentos da Polícia Civil?
Porque a polícia judiciária (Polícia Civil) está completamente desestruturada. Eu não estou criticando os delegados, eles fazem o possível. Critico a macroestrutura. É impossível um SI (Serviço de Investigação) de uma delegacia de homicídios funcionar com três, quatro investigadores, no máximo! Tem delegado que nem escrivão tem. Isso não existe! É impossível dar conta. Digo isso de Camaçari, mas essa realidade é do DHPP da área do júri em geral. Mas em Salvador e a região metropolitana a realidade é toda essa. Uma delegacia de homicídios de Camaçari, que tem mais de 200 homicídios por ano tem cinco agentes. A polícia civil não consegue enfrentar minimamente essa demanda (homicídios) que cresce ano a ano.
Então, por que não se investe na Polícia Civil?
Não sei dar essa resposta. Eu consigo ter uma visão do lado do judiciário. Consigo ver e falar porque consigo perceber isso empiricamente dia a dia há anos.
Mas por que inquéritos antigos somente agora começaram a ser enviados à justiça, porque poderiam ficar mais tempo nas delegacias?
O Ministério Público não tinha a cultura institucional de cobrar a polícia a observância dos prazos legais para concluir os inquéritos. Agora Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) coloca isso como meta, o controle da atividade policial para os promotores cumprirem. Antes do CNMP impor essas metas, isso não era feito. O CNMP em Brasília é o equivalente ao nosso CNJ (Conselho Nacional de Justiça). O Ministério público, por imposição do CNMP, passou a cobrar a polícia com relação aos prazos para concluir os inquéritos policiais. Isso há cerca de dois anos. Havia inquéritos que ficam parados nas delegacias indefinidamente por anos, sem o conhecimento do CNMP.
Por que o Ministério Público da Bahia (MP-BA) não acompanhou mais de perto o andamento das investigações, cobrando resultados logo após a instauração dos inquéritos?
Nunca consegui direito entender as causas, mas o Ministério Público, responsável pelo controle institucional, nunca exerceu de fato o controle dos prazos desses inquéritos, que ficam anos e às vezes até prescrevem sem nunca ter ido para o fórum. O MP não tem controle nenhum dos prazos e teria que ter.
Quais são os prazos legais para a Polícia Civil concluir uma investigação? Ou seja, em média, um delegado tem quanto tempo para enviar um inquérito ao ministério público?
O art. 10 do CPP (Código Processual Penal) estabelece que, estando o investigado solto, o inquérito policial deve ser concluído em 30 dias. Não sendo possível, a autoridade deve solicitar a prorrogação do prazo, para prosseguir com as diligências. Não há limite exato de prorrogações, podendo haver várias, a depender da complexidade de cada caso. Nos demais Estados, como o prazo de 30 dias se tornou irreal, são concedidos prazos normalmente de 60 ou 90 dias, sucessivamente. Mas, ao final deles, os inquéritos policiais são remetidos ao MP (Ministério Público) com novo pedido de prorrogação, assegurando-se o controle efetivo das investigações, de modo que não ficam paradas. Aqui, não se exige o cumprimento da disposição legal que exige esse controle. Resultado, ficam anos e anos nas delegacias, sem irem ao MP.
E essa lentidão da polícia judiciária, de uma forma indireta, pode estimular a criminalidade?
A família da vítima e a sociedade ficam sem resposta e o que é pior: isso aumenta a impunidade. A probabilidade de um indivíduo que cometeu um crime ser processado, condenado e ter que cumprir pena, é baixíssima, é 8%, talvez. Existe uma regra de ouro para investigação de homicídios, que é muito falada no DHPP (Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa) de São Paulo. As primeiras 48 horas são as horas de ouro para se trabalhar numa investigação de um homicídio. Depois disso, fica cada vez mais difícil, porque os indícios começam a se perder.
E como fica o trabalho do judiciário nesse cenário?
A máquina de persecução penal é uma engrenagem. O trabalho do ministério público só vai poder ser bem feito se o trabalho da polícia judiciário foi. O trabalho do judiciário só vai ser bem feito se o trabalho do ministério público foi. Se uma das engrenagens do sistema, incluindo a Polícia Técnica, que é quem faz a perícia, não funciona, trava o motor todo! E o nosso trabalho fica aquém do que gostaríamos. Muitos desses processos, que são denunciados, você não tem elementos para pronunciar (indícios razoáveis de autoria) – a pronúncia é aquela decisão que remete ao júri popular.
Muito se fala que “a justiça é lenta”. Como o senhor entende isso?
O cidadão comum não tem conhecimento e nem tem a obrigação de conhecer da separação da função das instituições (Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público e do judiciário) ele ver o sistema como um todo. O que ele sabe é que perder um parente, um amigo e que ninguém foi responsabilizado. Então, ele ver como a falha da justiça como um todo. O Estado não deu uma reposta.
A incidência maior dos assassinatos é nos finais de semana, porque existem as festas, consumo de bebidas alcoólicas. Se um caso não for de repercussão, as apurações das delegacias do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), que têm equipes de investigadores para atuarem em regiões específicas, só iniciam na segunda-feira. Como o senhor avalia a situação?
As equipes do Silc (Serviço de Investigação em Local de Crime), com delegado, escrivães, peritos, é até bem-feito dentro das suas possibilidades. Os peritos tiram fotos, fazem uma perícia muito boa do local de crime, apreendem objetos, facas, material para comparação genética, os agentes colhem informações na vizinhança, vê tem câmeras em algum comércio. Depois eles remetem esse relatório na segunda-feira para a delegacia responsável, que demora demais. Fica muito tempo para dar andamento no inquérito e aí a prova se perde. Dá tempo de as pessoas armarem versões, sumirem com vestígios, fugirem, amedrontarem testemunhas, às vezes até, não é raro acontecer, sumirem com as mídias das câmeras de segurança.
Existem também a questão da falta da preservação da cena do crime ….
Sim. Nessas comunidades dominadas pela violência até para preservar o local (de crime) é difícil. Quando a Polícia Militar chega lá, já alteram. Os próprios parentes do morto ou os próprios traficantes já retiraram o relógio, a carteira e isso começa a prejudicar a investigação. São vários fatores, mas o determinante, não tenho dúvida de afirmar isso, é a demora do andamento dos inquéritos, as diligências demoram muito entre uma e outra e nisso se perde toda a prova.
Na Vara do Júri e Execuções Penais de Camaçari, 99% dos casos são homicídios …
A briga é a de sempre, o BDM (Bonde do Maluco), que é PCC, e a Comando Vermelho. Camaçari tem essa peculiaridade, é o maior município da região metropolitana. Então, apesar de ter uma zona industrial enorme, ele tem também regiões de mata desertas, com a Estrada da Cetrel, Cascalheira, onde corpos são encontrados. Os bairros da orla são muito perigosos, mais do que o centro. Arembepe, Beco da Cebola (Monte Gordo), Vila de Abrantes são distritos muito violentos por serem bolsões dominados pelo tráfico de drogas. São quase sempre jovens, sequestrados em outros bairros e levados para essas localidades já conhecidas, onde são executados.
O senhor está em Camaçari há um bom tempo. Como avalia a segurança no município?
Se não fosse o empenho da PM (Polícia Militar), a situação estaria bem pior. Falta o trabalho que vem depois da Polícia Militar, que é a parte de investigação. Falta investimento da polícia investigativa, para identificar e prender, tirar essas pessoas de circulação. A PM ainda é o último anteparo entre a criminalidade e a sociedade, trabalha muito, um trabalho extenuante, mas o problema não é só o policiamento ostensivo. A PM consegue evitar o caos.
Então, o senhor diz que a Polícia Militar é mais eficiente?
A Polícia Militar ainda funciona bem melhor que a Polícia Civil, mas não estou falando isso, criticando a falta de empenho dos policiais civis, não é isso. Estou falando que a Polícia Civil está mais sucateada. A PM, apesar de tudo, tem o efetivo melhor, mais concurso públicos, recebe mais viaturas e ainda consegue trabalhar, a civil não. É um retrato em todo o estado.
“É revoltante”, diz irmã de comerciante assassinado sobre inquérito arquivado em Camaçari
Depois de pouco mais seis anos da morte do irmão, o comerciante José Francisco da Purificação, a dona de casa foi à 4ª Delegacia de Homicídios de Camaçari em agosto de 2020, após ter sido solicitada. Ela foi na esperança de o delegado informar a prisão do autor do crime, mas ao chegar, a decepção. “Fui lá pra ouvir que o caso foi arquivado, porque não conseguiram provas. Isso é revoltante! Até hoje vivemos com essa dor”, desabafou Alexsandra.
José Francisco era dono de ferro-velho e foi morto em 14 de fevereiro de 2014. O inquérito foi arquivado pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) em 27 de julho de 2020. O jornal teve acesso à decisão do promotor Bruno Sanfront. No documento consta que Ítalo Correia Silva, conhecido como “Tortuga”, confessa o crime em interrogatório na 4ªDH, alegando que a José Francisco não queria devolver um cavalo que lhe pertencia e que no dia do crime, efetuou seis disparos contra a vítima em um bar.
“Ocorre que, após essa confissão, datada de 7 anos atrás, requisitamos à Polícia Civil que fosse feita nova oitiva de Ítalo, dessa vez gravada em mídia audiovisual, assim como para que fossem localizadas eventuais testemunhas. No entanto, o Investigado não fora encontrado e também não houve localização de quaisquer outras provas. A confissão, da forma realizada, foi suficiente para embasar a continuidade das investigações, mas seria insuficiente para uma ação penal, já que não confirmada por outros elementos. Da análise das provas trazidas na presente investigação, vê-se que não há elementos tanto para corroborar quanto para infirmar a versão apresentada pelo Investigado”, diz documento.
Por fim, o promotor complementou sua decisão: “Não visualizamos, portanto, novas linhas investigativas viáveis e que justifiquem a manutenção da abertura deste Inquérito, com utilização estéril dos já extremamente escassos recursos da Polícia Civil, especialmente tendo se passado tantos anos dos fatos”.
“Esse é um de muitos casos. O promotor pode pedir o arquivamento, porque já foi feito o que era possível fazer. Ele entende que todas as possibilidades foram esgotadas”, comentou o juiz Waldir Viana, titular da Vara do Júri e Execuções Penais da Comarca de Camaçari.
Em 10 de agosto de 2021, o promotor Bruno Sanfront arquivou o inquérito que era apurado na 4ªDH sobre um duplo homicídio, ocorrido em 30 de janeiro de 2012, na Estrada da Biribeira, em Camaçari. Durante os quase 10 anos que o inquérito era apurado, apenas uma das vítimas foi identificada: Ailton da Silva Júnior.
“Não foi possível reunir testemunhos ou provas técnicas que indiquem minimamente acerca da autoria do delito, assim como não há informações que levem a novas linhas investigativas viáveis e que justifiquem a manutenção da abertura deste Inquérito”, diz o promotor, que mais uma vez aponta a deficiência nas investigações, ao destacar a “utilização estéril dos já extremamente escassos recursos da Polícia Civil, especialmente tendo se passado muitos anos desde os fatos”.
Instituições se posicional sobre falas de juiz
Procurada as instituições ligadas diretamente às questões apontadas pelo juiz. O Ministério Público da Bahia (MP-BA) informou que “os crimes de homicídio demandam, muitas vezes, investigações complexas, que necessitam de um corpo policial especializado e do apoio de um departamento de perícia técnica estruturado”. “ Tal cenário demanda um constante aperfeiçoamento das forças policiais com investimento, notadamente na atividade de inteligência, e permanente capacitação. Camaçari está inserido neste mesmo contexto”, diz nota.
O MP-BA disse que “nunca deixou de atuar no controle externo da atividade policial” e que vem adotando medidas para melhorar a atuação de controle e monitoramento dos prazos e da qualidade dos inquéritos policiais a cargo da Polícia Civil, entre elas: o aumento de oito para 12 no número de promotores com atribuição exclusiva para os crimes de homicídios em Salvador, que também presta apoio aos promotores de Justiça das Comarcas do interior nas investigações e ações penais envolvendo homicídios e crimes contra a vida; o aumento de dois para seis no número de promotores da capital com atribuição exclusiva para o controle externo da atividade policial e a tutela difusa da segurança pública e o desenvolvimento de um sistema de protocolo eletrônico de inquéritos policiais, por meio do qual os inquéritos encaminhados pelas Polícias Civil e Militar são recepcionados já digitalizados pelo Ministério Público, e retornam à Polícia Civil, quando necessário, também digitalizados, o que agiliza a tramitação destes procedimentos entre as instituições.
A Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA) informou que a resposta será dada pela Polícia Civil. Em nota, a PC-BA reconhece o problema apontado pelo titular da Vara do Júri e Execuções Penais da Comarca de Camaçari, o juiz Waldir Viana, afirmando que “tem trabalhado, a fim de reduzir o passivo de inquéritos antigos, de em média 10 anos, que não tiveram autoria definida na época e permaneceram na unidade”. Disse que o número de procedimentos enviados ao MP-BA citado pela reportagem não se deve ao fluxo normal de inquéritos no município, e, sim, a um “trabalho específico de buscar o andamento de investigações que estavam paradas”.
Sobre a declaração do juiz que os homicídios no município são apurados por até quatro investigadores, e que isso seria uma realidade nas demais unidades, a PC-BA disse que “não é verdadeira a suposição de que quatro policiais civis são responsáveis pela investigação dos homicídios ocorridos no município”. A pasta alega que, além da 4ª DH de Camaçari, apuram a 26ª DT, de Vila de Abrantes, e a 33ª DT, de Monte Gordo e a 18ª DT/Camaçari e do Serviço de Investigação de Local de Crime de Homicídio (SILCH/RMS).
A PC-BA disse ainda que há um concurso em andamento para os cargos de investigador, delegado e escrivão, que julho do ano passado, foi inaugurado um complexo policial em Camaçari e que realiza obras em mais de 150 unidades no estado.
O Departamento de Polícia Técnica (DPT), citado em resposta do MP-BA na quinta-feira (22), através da a assessoria de comunicação, informou ‘que a Instituição está em processo de Reestruturação que envolve a ampliação do quadro funcional, através de concurso público já em andamento, de maneira a conferir mais celeridade ao atendimento das solicitações de perícia, além do Programa do Governo do Estado que vai garantir novos investimentos, tanto em infraestrutura quanto em renovação do nosso parque tecnológico’.