Mesmo pequena, a queda das MVIs é positiva e precisa ser realçada. Em 2022, o Brasil registrou 47.508 mortes violentas intencionais (MVI), categoria criada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que agrega as vítimas de homicídio doloso (incluindo feminicídios e policiais assassinados), roubos seguidos de morte, lesão corporal seguida de morte e as mortes decorrentes de intervenções policiais. Esse número só é maior daquele observado em 2011, primeiro ano da série histórica monitorada pelo FBSP. Em termos relativos, a taxa de mortalidade ficou em 23,4 por grupo de 100 mil habitantes, recuo de 2,4% em relação ao ano de 2021. Mesmo significando uma redução de ritmo em relação aos anos entre 2018 e 2021, essa pequena queda é positiva e precisa ser realçada.
Todavia, ela também revela, como veremos na sequência, tensões, limites metodológicos e problemas que devem ser destacados, sob o risco de a sociedade brasileira ser induzida a acreditar na ideia de que o país resolveu seu dilema civilizatório e agora é uma nação mais segura. Estamos longe disso. Ainda somos uma nação violenta e profundamente marcada pelas diferenças raciais, de gênero, geracionais e regionais que caracterizam quem são e onde vivem as vítimas da violência letal.
A tabela abaixo apresenta a variação das taxas de MVI no período mais recente, por região. A análise da distribuição das mortes indica um quadro bastante heterogêneo no contexto nacional. Nas regiões Sul e Centro-oeste a violência letal cresceu, respectivamente, 3,4% e 0,8%.
O Sudeste apresentou redução de 2% e as regiões Norte e Nordeste, que viveram períodos agudos de crescimento da violência letal na década passada, foram capazes de reagir e apresentaram reduções importantes. No Norte, a redução foi de 2,7% e, no Nordeste, chegou a 4,5% de queda. Apenas na região Nordeste, cerca de 889 vidas foram poupadas, o que forçou a redução da violência letal nacionalmente. Apesar do resultado positivo, as duas regiões ainda convivem com taxas muito elevadas de violência letal, conforme tabela abaixo.
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Polícia Civil de Minas Gerais; Núcleo de Apoio Técnico do Ministério Público do Acre (NAT/MPAC); Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Na escala subnacional, o estado mais violento do país[1] em 2022 foi o Amapá, com taxa de MVI de 50,6 por 100 mil habitantes, mais do que o dobro da média nacional. O segundo estado mais letal foi a Bahia, com taxa de 47,1 por 100 mil e, na terceira posição, temos o Amazonas, com taxa de 38,8 por 100 mil. No outro extremo, as unidades da federação com as menores taxas de violência letal foram São Paulo, com 8,4 mortes por 100 mil habitantes, Santa Catarina, com 9,1 por 100 mil e o Distrito Federal, com taxa de 11,3. Ao todo, 20 estados registraram taxas de MVI acima da média nacional.
Gráfico 1: Taxa de Mortes Violentas Intencionais (MVI) por UF, 2022.
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Polícia Civil de Minas Gerais; Núcleo de Apoio Técnico do Ministério Público do Acre (NAT/MPAC); Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em outra abordagem, o gráfico 2 traz a série histórica de Mortes Violentas Intencionais[2] que o FBSP produziu ao longo dos anos. Os dados começam em 2011 pois é quando passamos a monitorar as mortes por intervenções policiais. A partir de 2015 os dados de homicídio incluem também os feminicídios. Os valores do gráfico estão em número absoluto de ocorrências, em função de limitações temporárias identificadas nas projeções das estimativas populacionais do período 2011-2021 a partir da divulgação do Censo 2022, e que serão detalhadas ao final deste texto. Assim sendo, o gráfico 2 demonstra o crescimento dos homicídios ao longo da década de 2010 até chegar ao recorde no ano de 2017, quando ao menos 64 mil pessoas foram vítimas de MVI segundo os registros policiais.
Ambas têm origem no Sudeste, mas ao longo dos anos 2000 foram expandindo seus domínios para outras regiões e buscando parcerias com organizações criminosas locais que também atuavam com o narcotráfico. O PCC, especificamente, acelerou este projeto entre 2012 e 2018, com cerca de 18 mil novos batismos no período, a maioria fora de São Paulo, o que desencadeou o racha com o Comando Vermelho (Manso, Dias, 2018[3]).
Gráfico 2: Mortes Violentas Intencionais no Brasil, 2011 a 2022.
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A partir de 2015 iniciam-se uma série de reações, ainda locais, para frear a expansão do PCC em território nacional, mas a execução do traficante Jorge Rafaat, atuante na fronteira entre Brasil e Paraguai, foi o ponto de virada que escalonou o conflito. Com o assassinato de Rafaat, o PCC passou a dominar a região, muito estratégica para a produção em larga escala de maconha, mas também operando como hub para o preparo da cocaína produzida nos países andinos, que é trazida para o Brasil para consumo interno, mas também exportada para os países da Europa e da África. Hoje o PCC é a maior facção criminosa do país, conta com ao menos 35 mil integrantes, sofisticados métodos de lavagem de dinheiro e se conecta com organizações criminosas em todo o mundo, tal como a máfia italiana ‘Ndrangheta (Adorno, Muniz, 2022 [4]).
Violência na Amazônia
Após a morte de Rafaat a guerra entre PCC e CV explodiu, gerando conflitos no sistema prisional de vários estados e muitas mortes nas ruas, o que explica o crescimento agudo da violência nos anos de 2016 e 2017. Em meados dos anos das 2010, as duas facções passam a explorar cada vez mais as alianças firmadas no sistema prisional de estados da região amazônica, o que transferiu estes conflitos para territórios da região e permitiu a associação de grupos do narcotráfico a lideranças de outros ilícitos, como madeireiros e garimpeiros.
Não é à toa, a região norte passa de uma média de 3.300 MVI em 2011 para cerca de 8.000 em 2018 e continua com número de mortes violentas intencionais bem superiores à média nacional. A região, muito estratégica pela proximidade com os principais produtores de cocaína do mundo (Bolívia, Peru e Colômbia), mas também pela difícil fiscalização no território, permeado de rios e florestas, passou a ser disputada por diferentes grupos criminosos. Isso resultou no aliciamento de indígenas, quilombolas e ribeirinhos para o narcotráfico e no crescimento exponencial da violência nos territórios da floresta.
Gráfico 3: Mortes Violentas Intencionais no Brasil, por região, 2011 a 2022.
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Pelo menos dois fatores parecem contribuir diretamente para o crescimento da violência letal na região da Amazônia Legal: a intensa presença de facções do crime organizado e de disputas entre elas pelas rotas nacionais e transnacionais de drogas que cruzam a região; e o avanço do desmatamento, garimpos ilegais e a intensificação de conflitos fundiários, que resulta também no crescimento da violência letal.
Os gráficos 1 e 4 reforçam esse cenário ao mostrar que todos os nove estados que compõem a Amazônia Legal continuam a possuir, em 2022, taxas de MVI bem superiores à média nacional, bem como observam que a taxa de violência letal nos municípios que compõem a Amazônia legal é 44% superior à média brasileira. Enquanto no Brasil a taxa foi de 23,4 por 100 mil habitantes em 2022, na Amazônia chegou a 33,8 por 100 mil. Segundo outros estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública[5], a violência na Amazônia está associada a violência do narcotráfico e das disputas entre as facções de base prisional; a intensificação dos conflitos fundiários com o avanço do desmatamento; e da exploração ilegal de recursos naturais.
Mas não só, a violência da região correlaciona-se com o fato de que as capacidades institucionais das agências encarregadas de aplicar lei e segurança pública são insuficientes e/ou frágeis. Ou seja, na Amazônia, o eixo que estrutura a realidade da segurança pública é aquele que alia a sobreposição de crimes ambientais, violência armada e narcotráfico à difícil tarefa de prover segurança em um contexto de governança complexa e difusa. O FBSP tem defendido que, na Amazônia, outros arranjos federativos e de cooperação na prevenção e enfrentamento de crimes e violências sejam desenhados. A atual estrutura estatal não é capaz de, sozinha, dar conta desse enorme desafio.
Gráfico 4 – Distribuição das Mortes Violentas Intencionais por Tipo e Localização
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Perfil das vítimas das Mortes Violentas Intencionais
O perfil das vítimas de mortes violentas intencionais não se altera significativamente de um ano para o outro e segue um padrão mais de longa duração. Com aumento ou redução nos estados, o perfil das vítimas se mantem muito parecido nas últimas edições do Anuário. Em média, 91,4% das mortes violentas intencionais vitimam homens, enquanto 8,6% vitimam mulheres. Este percentual varia de acordo com a ocorrência: entre os mortos em intervenções policiais, 99,2% das vítimas eram do sexo masculino.
Gráfico 5 – Distribuição das MVI por Sexo e Categoria de Registro
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em relação ao perfil étnico-racial das vítimas, 76,5% dos mortos eram negros, reafirmando dados já apresentados neste Anuário e/ou no Atlas da Violência. Negros são o principal grupo vitimado pela violência independente da ocorrência registrada, mas chegam a 83,1% das vítimas de intervenções policiais. Mesmo entre os latrocínios, que são os roubos seguidos de morte, a vitimização de pessoas negras é maior do que a participação proporcional delas na composição demográfica da população brasileira. Se esse é um dado já conhecido, chama atenção que não exista um debate mais amplo sobre suas origens, causas e possibilidades de redução. É um debate que ainda é tabu e interditado entre os tomadores de decisão nas organizações de segurança pública.
Gráfico 6 – Distribuição das MVI por Cor/Raça e Categoria de Registro
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Outro dado que não oscila em relação às séries descritas em edições anteriores do Anuário, mas cuja dinâmica é importante de se destacar é aquele que constata que 50,3% das vítimas de MVI eram adolescentes e jovens com idade entre 12 e 29 anos. Dentre os mortos em intervenções policiais, esse grupo etário concentra 75% das mortes. Já os roubos seguidos de morte atingem um público mais velho, ¼ tem mais de 60 anos e 46,9% tinham entre 35 e 59 anos quando foram mortos. Os números são condizentes com aqueles já analisados em edições anteriores do Anuário e pela literatura da área. E, como já bastante destacado, esse padrão acaba por afetar a dinâmica demográfica da população brasileira e pode, até mesmo, ser assumido como uma das variáveis que ajudam a explicar o fato de o Censo 2022, do IBGE, ter registrado uma população menor do que a projetada pelas estimativas calculadas pelo próprio Instituto.
Gráfico 7 – Distribuição das MVI por Faixa Etária e Categoria de Registro
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em relação ao instrumento empregado, as armas de fogo seguem sendo o principal instrumento utilizado para matar no Brasil. 76,5% dos casos foram praticados com uso de arma de fogo. Aqui, porém, para além das armas de fogo, nota-se que a violência atinge níveis extremos quando, pela própria dinâmica do tipo penal, 37,1% das mortes derivadas de Lesões Corporais foram provocadas por agressões, enforcamentos, sufocamentos e similares. Em 15,3% das Lesões Seguidas de Morte, o instrumento utilizado foram armas brancas, como facas. Dito de outra forma, a arma de fogo é o principal vetor das Mortes Violentas Intencionais, mas a questão da violência letal não se encerra apenas na necessária e urgente retomada de políticas responsáveis de controle e rastreamento de armas de fogo.
Gráfico 8 – Distribuição das MVI por Tipo de Instrumento Utilizado e Categoria de Registro
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Por fim, quando são analisados os locais em que as MVI ocorreram, os dados são robustos em indicar as diferenças de padrão e características entre os diferentes tipos penais que compõem essa categoria agregadora de registros. Na média, 52,3% das MVI foram cometidas em vias públicas, seguidos das ocorrências cometidas nas residências das vítimas (22,6%). A ideia de que a casa é o reduto seguro das pessoas não pode, infelizmente, ser confirmada pelos dados de MVI no Brasil. A violência é uma experiência possível de ser vivida em qualquer local. Seja como for, em termos desagregados, observa-se a aderência dos registros aos modelos de prevenção e enfrentamento do crime e da insegurança que têm sido colocados em prática no país.
No caso específico das Mortes Decorrentes de Intervenção Policial, 68,1% dos registros informaram que elas ocorreram em vias públicas. Tais ocorrências estão, ao que tudo indica, associadas tanto aos modelos e padrões de policiamento adotados sobretudo pelas Polícias Militares estaduais, que são as responsáveis pelo policiamento ostensivo previsto no Artigo 144 da Constituição Federal, quanto à dinâmica da criminalidade passível de ser percebida nas ruas. Ainda em relação às MDIP, um segundo dado ganha relevo: 15,8% dos registros de mortes decorrentes de intervenção policial ocorreram nas residências das vítimas, fato que pode, por um lado, estar ligado à resposta das Polícias ao recrudescimento da violência doméstica. Porém, por outro lado, tal percentual também poderia ensejar estudos sobre critérios e procedimentos adotados pelas Polícias para entrada em domicílios, que passam pela definição objetiva da fundada suspeita e pela flagrância delituosa.
Tabela 2: Distribuição da Mortes Violentas Intencionais por Local de Ocorrência do Fato e Tipo Penal
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Metas de Redução de Mortes Violentas Intencionais
Em 2021, o Ministério da Justiça e Segurança Pública revisou o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social lançado em 2018 após a aprovação da lei que criou o Sistema Único de Segurança Pública – SUSP. Nesta revisão, o MJSP estabeleceu uma série de metas de redução de homicídios dolosos (incluindo sem maiores distinções os feminicídios, as mortes decorrentes de intervenção policial e as mortes de policiais), de lesões corporais seguidas de morte e de latrocínios. O Ministério definiu que até 2030, fim do prazo de vigência do atual Plano Nacional, a meta de redução desses crimes somados deveria alcançar a taxa de 17 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes. O gráfico 9, mostra, no entanto, que a meta já foi alcançada em 54,0% dos 5.570 municípios brasileiros. Dessa forma, o que fica patente é que o problema pode ser enfrentado de forma ainda mais efetiva se ações focalizadas forem pensadas e não se diluírem anúncios ou medidas genéricas.
O gráfico 9 revela ainda que em 35,8% dos municípios brasileiros as taxas de MVI são ao menos o dobro da média nacional, sendo 23,1% deles com taxas superiores à média nacional de 23,4 e menores do que o dobro dessa média (46,8%). Já 11,6% dos municípios brasileiros possuem taxas no intervalo entre o dobro da média nacional (46,8%) e 100 MVI para cada grupo de 100 mil habitantes; e, por fim, 1,1% dos municípios brasileiros têm taxas de MVI superiores a 100 mortes por 100 mil habitantes. É preciso que ações urgentes sejam priorizadas nesses municípios mais violentos, incluindo os pequenos e localizados na Amazônia.
Gráfico 9 – Distribuição dos 5.570 Municípios Brasileiros, segundo Faixas das Taxas de MVI – 2022
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A análise dos dados de Mortes Violentas Intencionais ocorridas em 2022, ora divulgados pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pode ser finalizada, de modo bastante sintético, na constatação que os fenômenos mais estruturais que marcam a área foram submetidos a níveis de opacidade maior. Estamos em uma fase em que variáveis de contexto aliam-se às já deficitárias condições de qualidade e transparência dos dados para compor um cenário desafiador para o monitoramento da segurança pública e da violência letal. Em outras palavras, mensurar a violência letal e estabelecer cruzamentos com outras variáveis socioeconômicas e demográficas é técnica básica de análise criminal. Porém, este ano, produzir tais comparações e análises foi muito complicado.
Em primeiro lugar, é notável que o Brasil ainda não tenha dados divulgados pelo Escritório das Nações Unidas para Crimes e Drogas (UNODC) para os anos de 2022 e 2021 em seu Data UNODC[1]. Enquanto várias outras nações já publicaram seus dados, o país consta como sem informações no site do órgão da ONU dedicado às estatísticas criminais no mundo. Ou seja, para esta edição do Anuário, não podemos saber qual a quantidade e/ou a proporção que os homicídios cometidos no Brasil representam em relação ao total de mortes violentas no mundo. É provável que, se repetirmos as tendências da última década, tenhamos sido o país com o maior número de homicídios do planeta e ficado entre as 10 nações com maiores taxas de homicídios por 100 mil habitantes. E essa lacuna de informações não é derivada da falta de dados, uma vez que tanto o Anuário quanto os sistemas oficiais da área da Saúde e da Justiça já divulgaram dados de 2021.
Em segundo e talvez mais crítico lugar, outro fator que torna mais complexa a análise dos dados é o impacto dos dados do novo Censo do IBGE, referente a 2022 e divulgados recentemente. O Censo 2022 constatou que a população brasileira cresceu menos do que o estimado anteriormente e impôs uma revisão de todas as taxas utilizadas no período entre os Censos de 2010 e 2022. Isso porque, de forma bastante simplificada, as projeções populacionais são, a rigor, hipóteses demográficas que vão sendo confirmadas e validadas com os censos nacionais. Elas são construídas com base em um conjunto de variáveis que envolve expectativa de vida, mortalidade, fecundidade, migração, entre outras. E como o mundo presenciou, entre outros fenômenos, uma epidemia de escala global entre 2020 e 2022, as hipóteses utilizadas nas projeções que geraram as estimativas populacionais mostraram-se distorcidas e, em várias situações, provocaram situações em que a taxa de MVI calculada para 2022 fosse maior do que aquela observada para os anos entre 2011 e 2021, mesmo quando o número absoluto de mortes tenha sido menor (isso ocorre quando a população de uma cidade, estado ou país é, segundo o Censo 2022, menor do que a utilizada nos cálculos anteriores).
Para ajustar tais estimativas, o IBGE ainda está realizando estudos e pesquisas e deve recalculá-las no médio prazo. Como não há prazo para a conclusão dessa revisão, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública viu-se obrigado, para que leituras equivocadas fossem feitas, a não produzir análises mais sensíveis com base nas taxas por 100 habitantes, que é a convenção mais adequada para comparar universos/unidades de análises de tamanhos muito diferentes entre si, para a série histórica toda de seus dados. A decisão foi por recalcular apenas a estimativa populacional de 2021, de modo a torná-la compatível e comparável aos dados do Censo 2022.
Para tanto, a população de 2021 utilizada para o cálculo da taxa foi recalculada considerando os dados publicados no Censo 2022 e 2010 pelo método de interpolação linear, sendo diferente daquela divulgada pelo IBGE para o mencionado ano. Essa decisão não é apenas técnica e reforça a confiança que o FBSP deposita no IBGE, um dos órgãos nacionais de estatísticas públicas mais renomados do mundo. Ela opta pela cautela e pelo uso apenas da taxa ajustada de 2021. No próximo ano, toda a série deve ser republicada a partir dos ajustes realizados pelo Instituto. De qualquer modo, é digno de reconhecimento que as análises sobre as tendências das MVI sofrem com essa limitação temporária e não são capazes de serem aprofundadas a contento.
Por fim, uma terceira razão para o reforço da opacidade na análise das Mortes Violentas Intencionais é que, na medida em que o Ministério da Justiça e Segurança Pública está produzindo a “Pesquisa Diagnóstica – Fluxos de coletas de dados estaduais de Segurança Pública” e, por esta razão, o FBSP não atualizou o seu estudo sobre qualidade da informação em 2023 – estudo realizado a cada dois anos para permitir análises mais acuradas sobre a forma como cada Unidade da Federação coleta, tabula e sistematiza dados de ocorrências policias. A avaliação foi que atualizar o estudo do FBSP poderia gerar sobreposição de trabalhos e sobrecarregar os gestores estaduais de estatísticas. Seja como for, o fato é que as análises feitas neste texto tiveram que administrar todas as limitações e lacunas mencionadas. Mesmo assim, por ora, foi possível constatar várias permanências e alguns pontos de alertas sobre as configurações das mortes violentas intencionais no Brasil.
Notas
[1] Ao contrário do que o senso comum muitas vezes nos faz crer, a mensuração da violência entre diferentes unidades de análise, ainda mais quando possuem tamanhos ou populações muito diferentes entre si, exige que os números absolutos dos fenômenos que estão sendo observados sejam ponderados por um denominador padronizado. No caso de mortes violentas, esse denominador é a população de cada unidade considerada, já que estamos diante de um fenômeno que envolve o indivíduo. Já no caso de furtos de veículo, por exemplo, o denominador padrão é a frota de veículos de cada unidade considerada. Ou seja, a utilização de denominadores padronizados permite a comparação de grupos, em geral com 100 mil fenômenos observados. Isso não significa o não reconhecimento de situações de violência extrema em locais e regiões específicas. Mas, ponderadas com a população residente, tais situações podem não ter a capacidade de influenciar a tendência como um todo.
[2] Os dados foram apresentados em números absolutos devido a divulgação recente, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, do Censo 2022, que indicou redução na população brasileira em relação às projeções e estimativas divulgadas anteriormente. Aguardaremos a atualização das estimativas populacionais para o intervalo entre 2011 e 2021 para atualizar as taxas da série histórica de indicadores criminais divulgados pelo FBSP.
[3] MANSO, B. P.; DIAS, C. C. N.. A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil. São Paulo, Todavia, 2018.
[4] ADORNO, L.; MUNIZ, T.. As 53 facções criminosas brasileiras in Anuário Brasileiro de Segurança Pública: Especial Eleições 2022. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022.
[5] https://forumseguranca.org.br
SAMIRA BUENO - Diretora Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
RENATO SÉRGIO DE LIMA - Diretor Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professor da FGV EAESP.