Em entrevista exclusiva à Crusoé, ex-presidente defendeu o legado de seu governo na economia, negou ter tido a intenção dar um golpe de Estado e procurou reafirmar sua imagem de outsider
Não é que Jair Bolsonaro tenha abandonado completamente os velhos hábitos. Nesta semana, ele chamou Lula, seu arqui-inimigo, de “jumento”. Ao receber Crusoé para uma conversa, no entanto, o ex-presidente procurou se mostrar mais contido nas palavras e nos gestos, enquanto defendia o legado de seu governo na economia, alegava jamais ter tido a intenção de promover um golpe de Estado e reafirmava sua imagem de outsider. “Fui discriminado durante todo o mandato”, disse ele.
A entrevista aconteceu na quarta-feira, 26, no apartamento de seu ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten, em São Paulo. Bolsonaro passou pela capital paulista para encontros com empresários e reuniões políticas — essas últimas visando, especialmente, às eleições municipais de 2024. Seu partido, o PL, está prestes a fechar uma aliança com o atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes. “Está bastante avançado com o Nunes”, disse o ex-presidente. “Falta eu e ele tomarmos umas tubaínas juntos para marcar o casamento.”
Bolsonaro também assegura que o desentendimento com um de seus principais aliados, o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas, não deixou sequelas. Na véspera da aprovação da reforma tributária na Câmara dos Deputados, Tarcísio deu entrevista ao lado do ministro da Fazenda, o petista Fernando Haddad, o que despertou a ira da direita. O próprio Bolsonaro mostrou insatisfação com o episódio, mas agora diz que o pupilo é “puro politicamente”. “Sempre esteve tudo bem, não pode haver problema entre nós”, afirmou o ex-presidente.
Inelegível até 2030, depois de ter sido condenado pelo TSE por abuso de poder político e econômico na reunião com embaixadores estrangeiros na qual pôs em dúvida o sistema eleitoral brasileiro pouco antes das eleições de 2022, Bolsonaro diz que pretende viajar pelo país, uma vez que “está sem tornozeleira eletrônica”. Sobre 2026, diz que é cedo para falar do assunto, mas garante: “Só estou morto quando estiver enterrado”.
O texto abaixo traz os principais trechos da conversa condensados e editados. A íntegra da entrevista pode ser vista no vídeo que também se encontra nesta página.
AMAZÔNIA, PETRÓLEO E O PODERIO MILITAR AMERICANO
A entrevista começou com uma pergunta sobre os clubes de tiro que o presidente Lula criticou nesta semana, mas Bolsonaro se desviou do tema para falar da Amazônia:
Do que vale a Amazônia, se não for para o bem da população como um todo? Acontece que certas coisas você só pode explorar se tiver parceria com um país bélico-nuclear. Se não, você não explora. Nunca neguei minha admiração por [Donald] Trump ou minha admiração pelo povo norte-americano. E falei para ele: “Nós temos a Amazônia e poderíamos fazer isso [a exploração] em conjunto”. O poderio militar serviria para o Brasil ter respaldo para explorar as riquezas sem pressões de outros países. Teria a pressão do mundo todo contra a exploração em terras indígenas. Nós apresentamos, em 2021, um projeto para permitir que o indígena faça em sua terra o que você pode fazer na fazenda ao lado da reserva. Mas as ONGs e outros países querem que o indígena permaneça selvagem. Estávamos conversando sobre um acordo com os Estados Unidos, mas aí veio a pandemia, depois Trump perdeu as eleições e o assunto foi encerrado.
GARIMPO É AVENTURA
Acontecem invasões de garimpeiros em terras indígenas. Gente que vai para lá de forma ilegal. Esse é o jeito certo de começar a exploração dessas terras?
O Tratado de Tordesilhas, de 1494, nós ultrapassamos com os bandeirantes, garimpeiros, atrás de esmeraldas, de ouro. Isso fez com que o Brasil passasse de um terço para três terços do seu tamanho atual. Quem é o garimpeiro? Meu pai garimpou durante pouco tempo. Eu mesmo, nos três anos em que eu servi em Mato Grosso do Sul, guardava uma bateia e um jogo de quatro peneiras na minha Brasília. Em 1985, se não me engano, eu vi na televisão: ouro na cidade de Saúde, na Bahia. No dia seguinte, eu peguei mais cinco voluntários e fomos garimpar. Se tivéssemos achado alguma coisa, eu não estava aqui.
Não é uma prática de 500 anos atrás?
É uma coisa que desperta a sua curiosidade. É o homem em busca de riqueza e aventura. Eu acredito que o garimpo fez o Brasil desse tamanho que está aí.
OS CLUBES DE TIRO E A ARMA DE CARLOS
O presidente Lula disse que os clubes de tiro deveriam ser fechados. Qual sua resposta?
O tiro é um fascínio. Na década de 1920, tivemos nosso primeiro ouro olímpico com o atirador Guilherme Paraense. Não vejo maldade nenhuma em quem quer atirar. Aliás, a esquerdalha nunca abandonou a ideia de, pela luta armada, conseguir alguma coisa. Se bem que agora mudaram bastante e estão mais com mentiras para chegar ao poder. Eu não consigo dormir desarmado. Eu me sinto mais seguro e raramente ando desarmado.
Quando o senhor foi assaltado, levaram uma arma sua. Esse não é um motivo para termos ao menos um controle mais rigoroso das armas de que as pessoas são proprietárias?
O problema é que está rigoroso demais. Não é qualquer um que pode ter uma arma no Brasil. O PT não respeitou o referendo das armas, que nos deu o direito de comprar armamento e munição. Como é que ele brecou isso? A comprovação da “efetiva necessidade”.
Até o meu filho, Carlos, nesta semana teve seu pedido de renovação de porte negado pela Polícia Federal. Se a gente tivesse a percepção de que isso aconteceria, teríamos feito o pedido ano passado. Ele não teria dificuldade. Está na cara que a Polícia Federal foi orientada pelo ministro da Justiça, embora eu não possa garantir. Esse que entra em comunidade onde eu não vou nem em carro blindado, mas ele vai. Não sei qual o poder que ele tem de ser imune a possíveis atos de violência. Talvez o Flávio Dino tenha um poder, um “repelente”. Agora é uma perseguição à minha família, sob todos os aspectos.
BOLSONARO, O PERSEGUIDO
O senhor se sente perseguido?
Por que a inelegibilidade? Triste é o país que condena seus cidadãos não por erros, por falhas… mas quando condena por virtudes. O que eu vejo do meu governo? Quatro anos, dois praticamente parados por conta da pandemia, e nós entregamos o país melhor do que eu recebi em 2019.
Eu resolvi ir embora em 30 de dezembro. Jamais entregaria a faixa para alguém com o passado do atual presidente que está aí. Jamais, jamais. Pela forma como ele foi tirado da cadeia, a forma como ele foi “descondenado” para driblar a Lei da Ficha Limpa. E, depois, como o TSE tratava as questões de interesse meu e dele. O TSE foi completamente favorável ao outro lado. Mas eu considero as eleições do ano passado uma página virada.
Desde quando assumi, falavam: “Ah, o Bolsonaro vai dar um golpe, vai dar um golpe”. Mas que golpe? Se eu tivesse que dar um golpe, eu daria durante o mandato. Não uma semana depois de ter deixado a Presidência da República.
GOLPE, SÓ EM PENSAMENTO
Em 2020, o senhor compartilhou uma entrevista do jurista Ives Gandra falando da utilização do artigo 142 para uma “intervenção militar pontual”. O senhor não estava sugerindo que esse era um caminho bom para o país?
Em 2017, a Dilma [Rousseff] já fora do governo, o ex-comandante do Exército, o general Villas Bôas, falou que a assessoria parlamentar dele e do Exército foi procurada pela esquerda para saber como o Exército encararia um Estado de Defesa. Depois disso, ninguém falou nada, ninguém discutiu nada.
Quando você fala de Estado de Defesa, de Estado de Sítio, de art. 142, são todos remédios previstos na Constituição. Se o presidente decide acionar o art. 142, precisa enfrentar as condicionantes, explicar o porquê de se fazer aquilo. Você tem que ouvir o Conselho da República. Então, houve alguma assinatura em qualquer documento da minha parte? Não houve nada. Eu convoquei os conselhos da República e da Defesa para tratar desse assunto? Não.
Então, em nenhum momento o senhor sentiu desejo de invocar o artigo 142?
Não, não. Dar um golpe é a coisa mais fácil que tem. O duro é o day after, o dia seguinte. Como é que o mundo vai se relacionar conosco? Temos experiência de países que tomaram medidas de força e as consequências são péssimas. Você não vê uma ação minha fora das quatro linhas. Na minha intimidade, eu fiquei revoltado quando o [Alexandre] Ramagem não pôde assumir a PF. Busquei contornar sem uma medida drástica. Quem hoje é o diretor da PF? Um amigo íntimo do Lula. Comigo não foi possível. Há uma diferença. Eu fui discriminado durante todo o mandato.
O senhor diz que um golpe não foi sequer pensado?
Pensar, todo mundo pensa. De vez em quando alguém falava alguma coisa. Agora, ninguém tentou me convencer.
Nem o Mauro Cid?
O telefone do Mauro Cid era um telefone público. Uma caixa de mensagens. Quando havia qualquer problema, informação sobre agenda, questões de ministros, tudo era no telefone dele. Se ele tivesse maldade, de três em três meses teria sumido com o telefone e com as mensagens, mas ficou tudo aberto.
Mas as trocas de mensagens do telefone do Mauro Cid indicam que a ideia do golpe estava borbulhando à sua volta, com gente fazendo pressão, como o coronel [Jean] Lawand. Como foi esse bastidor?
Eu nunca tive contato com o coronel Lawand. O Cid passou a ter amizade com algumas pessoas e a ter liberdade de falar o que bem entendesse. É comum você falar uma coisa que não queria e, depois que acontece, você se arrepende. Jamais alguém ia tratar de golpe por WhatsApp.