Na sexta-feira (21/07/2023), em solenidade que contou com a presença do presidente da República e de outras autoridades, foi assinado o decreto 11.615/2023, que passou a regulamentar a Lei 10.826/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento. Após mais de cinco meses de debates envolvendo pesquisadores, profissionais de diversas áreas, parlamentares, instituições da sociedade civil e pessoas ligadas ao chamado “mundo do tiro”, o grupo de trabalho instituído pelo Ministério da Justiça conseguiu ver seu trabalho se tornar realidade, e o resultado foi muito bom, com alguns pontos que merecem ser destacados.
Um desses pontos foi a criação de procedimentos para punição de pessoas que não renovem os registros de armas de fogo e permaneçam na irregularidade. No Anuário de Segurança Pública de 2022 chamou a atenção o número divulgado de 1.542.168 armas cadastradas no Sinarm (Sistema Nacional de Armas) com registros vencidos e não renovados. É um número alto, que evidenciou um problema na fiscalização do mercado pela Polícia Federal que era difícil de solucionar. Não havia na legislação ferramenta que possibilitasse aos policiais uma fiscalização mais efetiva, com previsão de sanções a quem permanecesse na irregularidade, e isso acabava por incentivar que muitos permanecessem nessa situação em razão dos gastos necessários para efetivar a renovação. No novo decreto, foi inserida a previsão da cassação do registro de arma de fogo se a pessoa, mesmo notificada, deixar de efetuar a regularização do registro. Uma medida que parece simples, mas que possibilita que se saiba se a pessoa ainda cumpre os requisitos necessários para manter a arma. Se isso não ocorrer, que essa arma seja retirada de circulação.
Outro ponto é a concentração dos registros das armas de fogo de civis em um único banco de dados e sob a fiscalização de uma única instituição, de caráter civil. Desde o primeiro decreto sobre o tema, publicado em 1934, durante o governo Vargas, essa foi a primeira vez em que os militares deixaram de ter controle sobre grande parte do mercado interno de armas de fogo. Apesar da redemocratização do país em 1985 e das legislações de 1997 e 2003, com seus decretos regulamentadores, somente em 2023 isso foi possível, e muito em razão das dificuldades apresentadas pelos militares ao exercer o papel de fiscalização da parte do mercado que estava sob seu controle.
Com relação à mudança na classificação de calibres, é importante salientar que isso não foi feito porque integrantes do governo acham que determinados calibres “são maus” enquanto outros “são bonzinhos”. A verdade é que até 2019, com a restrição de circulação de determinados calibres no mercado interno, criminosos que tinham interesse nessas armas precisavam recorrer ao tráfico ilícito internacional ou ao desvio de armas de instituições do governo, e munições eram ainda mais difíceis. Com a mudança promovida por Bolsonaro, calibres como o 9mm, .40 e 45 passaram a ser acessíveis à população e puderam ser comprados em grandes quantidades, e criminosos aproveitaram esse acesso facilitado. Há informações de que em algumas localidades criminosos passaram a usar pistolas 9mm, modificadas para modo automático, com carregadores ampliados, para contenção em operações policiais pelo seu custo mais baixo e acesso mais facilitado a munições em relação a fuzis. A procura foi tamanha que a pistola 9mm se tornou durante os últimos anos a arma mais vendida no país, ultrapassando um lugar que historicamente foi ocupado pelo revólver calibre 38. Restringir novamente o acesso a essas armas e munições era medida essencial.
Uma medida que chamou pouca atenção, mas que também pode afetar o mercado legal e facilitar a fiscalização, é a forma de seleção aleatória de instrutores de tiro e psicólogos. Isso é importante porque nos últimos anos se observou um crescimento grande no número de lojas e clubes de tiro e muitos estabelecimentos tinham o procedimento de indicar determinados profissionais para fazerem os exames práticos de tiro e psicológico. Isso acabava exercendo muita pressão sobre esses profissionais para que não reprovassem nenhuma das pessoas indicadas. Havia sempre a ameaça velada ou não de que reprovações fariam com que as indicações parassem e que profissionais perdessem suas fontes de renda. Esse tipo de procedimento também foi feito por muitos “despachantes” que às vezes atuavam como prepostos de lojas e clubes. Eram as chamadas “vendas em pacotes fechados”. Um único valor para resolver tudo até a entrega da arma ao cliente.
Mas o que mais chamou atenção no decreto foi a regulamentação da caça excepcional, uma atividade que na prática existe no país para a caça de somente uma espécie que é considerada invasora e pode ser alvo de caça, o javali. Se em 2017 a caça ao javali ocorria em 698 cidades, em 2022 esse número quase triplicou, chegando a 2010 cidades. Mesmo com o crescimento do número de caçadores, os javalis continuavam a se espalhar pelo país e era evidente que havia algo errado. O que ocorreu é que para ter a desculpa da caça e adquirirem mais armas e munições, pessoas levaram animais para diversos locais. Há notícia de que javalis foram vistos em ilhas, e javalis não nadam. A partir do decreto a caça só irá ocorrer após autorização do Ibama com determinação de limite territorial, período e com limitação de armas e munições que podem ser utilizadas. É uma medida que terá mais impacto para evitar a proliferação de javalis pelo país do que a caça em si.
O decreto, além de recolocar ordem no caos normativo criado durante o governo Bolsonaro, avança em pontos que não foram tratados ou o foram de forma superficial no decreto que regulamentou o Estatuto do Desarmamento em 2004. É preciso reconhecer o trabalho e dedicação de todos e todas que nos últimos anos combateram os retrocessos e apontaram os absurdos, mas necessário lembrar que o trabalho ainda não terminou. Parlamentares da chamada “Bancada da Bala” ou ligados à indústria armamentista, influenciadores digitais que enriqueceram defendendo a pauta armamentista e muita gente que lucrou com a corrida armamentista dos últimos anos vê essa nova regulamentação como um obstáculo a seus objetivos e irão atacar as mudanças promovidas. O decreto deve ser celebrado, mas sem baixar a guarda, porque será preciso defendê-lo.
ROBERTO UCHÔA - Policial federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.