É recorrente, e justificável, afirmarmos que a política de segurança pública no Brasil acumula muito mais fracassos do que sucessos. São inúmeras as experiências concretas do que não fazer no controle da criminalidade, prevalecendo a racionalidade do gerenciamento de crises. Devemos reconhecer que, ao longo do período democrático, pós-constituição de 1988, temos sido incompetentes na provisão da segurança pública como bem coletivo. Avançamos qualitativamente em diversos setores das políticas públicas nas últimas décadas, o mesmo não ocorrendo no âmbito da contenção da violência.
A despeito desse triste diagnóstico, nem tudo está perdido. Há nichos de ações governamentais caracterizados pela consistência técnica, persistência no tempo e resultados efetivos na redução da violência. São cases de sucesso que devem ser cantados em prosa e verso, servindo de modelos a serem seguidos. Nesse sentido, destaca-se a política de prevenção social à criminalidade implementada no estado de Minas Gerais que está completando, acredite se quiser, vinte anos de existência. Ressalto de início dois aspectos: em primeiro lugar, trata-se de política pública de prevenção, algo bastante rarefeito no cenário nacional. Em segundo lugar, trata-se de política pública que adquiriu o status de política de Estado e não mais de governo. Foi formulada em 2003, tendo sido transformada em Lei em 2019 através da Lei 23.450, que dispõe sobre a política estadual de prevenção social à criminalidade mediante a formalização de princípios, diretrizes e objetivos.
A longevidade dessa política pública não tem paralelos no país, sendo composta de projetos caracterizados pela focalização territorial bem como do público alvo, lastreando-se em metodologias consistentes. Os projetos que a compõem são os seguintes:
Fica Vivo, focado em adolescentes e jovens de territórios com maior concentração de crimes de homicídios e outras violências;
Central de Acompanhamento de Penas Alternativas (CEAPA), focado em pessoas em cumprimento de Alternativas Penais;
Mediação de Conflitos, direcionado para moradores residentes em territórios com maior concentração de crimes de homicídios e outras violências;
Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (PrEsp), focado em pessoas egressas do sistema prisional e seus familiares;
Se Liga, que atende adolescentes e jovens egressos do sistema socioeducativo de internação e semiliberdade e seus familiares;
Selo Prevenção Minas, que visa o apoio técnico e metodológico do Estado aos municípios interessados em elaborar Planos Municipais de Prevenção à Criminalidade.
A implementação dos projetos ocorre em equipamentos de base municipal denominados de Unidades de Prevenção à Criminalidade (UPC). Alguns desses equipamentos têm abrangência de atuação em territórios que registram maior concentração de homicídios, além de equipamentos com abrangência municipal localizados em suas áreas centrais. Existem também os equipamentos de base regional, situados em municípios-sede que são referências para outros municípios ao redor. Atualmente são 53 UPCs com 61 municípios atendidos. A destacar também que a operacionalização dos projetos é realizada através de parceria entre a Secretaria de Estado da Justiça e Segurança Pública (SEJUSP) e uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, que é o Instituto ELO. Até 2018 o instrumento jurídico vigente era o Termo de Parceria, que estabelecia as formas de atuação do Órgão Estadual Parceiro (OEP) e Instituição. Em 2018 foi promulgada a Lei nº 23.081, alterando o instrumento jurídico para Contrato de Gestão.
É preciso enfatizar alguns aspectos institucionais que singularizam esse case de sucesso. Desde sua formulação em 2003, a prevenção social foi concebida como política pública distinta das políticas sociais convencionais. Está sustentada numa matriz criminológica que utiliza os conceitos de fatores de risco da criminalidade e de segurança pública baseada em evidências. Para além disso, rompe com a falsa controvérsia repressão versus prevenção da criminalidade. Não é casual, portanto, que sua gestão esteja a cargo da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade (SUPEC), incrustada na mesma secretaria de estado que cuida do aparato policial, prisional e socioeducativo, qual seja, a Secretaria de Estado da Justiça e da Segurança Pública (SEJUSP).
Não se deduza da minha análise uma visão ingênua, acrítica e ufanista da trajetória dessa política pública em Minas Gerais. Os percalços foram diversos, vivenciando em alguns momentos riscos concretos de extinção. A sobrevivência dos projetos deveu-se em boa medida à mobilização de suas equipes técnicas, do público alvo e moradores dos territórios atendidos, além de poderosos lobbies exercidos pelo Ministério Público e prefeituras. É um case interessante de institucionalização de política pública no sentido sociológico do termo. Não tem dono e muito menos marca ideológica. Não pertence a um partido político específico, estando legitimada por segmentos expressivos da sociedade mineira. Tornou-se patrimônio do estado de Minas Gerais.
LUIS FLAVIO SAPORI - Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ, 2006). Foi Secretário-Adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais no período de janeiro/2003 a junho/2007. Coordenou o Instituto Minas Pela Paz no biênio 2010-2011. Atualmente é professor do curso de Ciências Sociais da PUC Minas e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública.