Desde quando chegamos ao governo federal, o que mais temos escutado é sobre a necessidade de implementar o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP. Tanto como expectativa quanto como questionamento, essa fala revela a urgência em conferir sustentação à política nacional de segurança pública.
O SUSP assumiu as características atuais com a publicação da Lei nº 13.675/2018, claramente inspirado nos sistemas únicos da saúde e da assistência social. A tríade conselho-plano-fundo foi trazida para a lógica da segurança pública como uma alternativa à disfuncionalidade de articulação e integração entre as ações de segurança pública nos diferentes níveis de governo. Como sabemos, tirar o SUSP do papel não se resume a emular outros sistemas. Há especificidades em suas modelagens e limitações constitucionais que caracterizam e condicionam essas áreas. Por exemplo, o cofinanciamento e o controle social são estruturantes nos sistemas de saúde e de assistência social e não existem na segurança pública.
Uma inovação desse quadro normativo a partir de 2018 foi o repasse fundo a fundo (FaF) da União para Estados e o Distrito Federal. Pela celeridade e simplificação, esse instrumento tem o potencial de representar verdadeira inflexão na segurança pública brasileira, o que foi potencializado com o incremento de receitas do Fundo Nacional vindas da arrecadação das loterias. No cotidiano nada rotineiro do governo, que é, também, pautado por respostas a crises que minam a capacidade de planejamento, temos tentado nesses primeiros meses avançar justamente na revisão do FaF. O nosso primeiro passo foi a revisão da capacidade de governança orçamentária do SUSP.
O ponto de partida se deu com a análise comparativa de diversos sistemas e fundos da Esplanada. Analisamos mais de doze sistemas e lógicas de pactuação e financiamento. As boas práticas foram retidas e os nossos vícios identificados. Em seguida, buscamos saber como se deu a gestão do FNSP, nos últimos 4 anos. Dois pontos se tornaram claros. O primeiro foi a ausência de identidade do FaF na segurança pública. Passamos a chamar o FaF de “funvênio”, numa referência ao modelo pouco flexível e burocrático de transferência de recursos interfederativa. O fundo a fundo da segurança pública ainda era caracterizado pelo burocrático arranjo criado há décadas em outro contexto normativo. Ainda mais dramática é a segunda constatação: a União basicamente renunciou à sua capacidade de indução de políticas públicas. E o fez com limitada capacidade de monitoramento e avaliação. Deliberadamente, não eram exigidos compromissos com indicadores de processos ou resultados. Isso limita qualquer possibilidade de monitoramento e avaliação dos impactos eventualmente produzidos pelos investimentos dos recursos federais. A ausência de informações organizadas e a de sistemas de gestão fez com que, por vezes, não conseguíssemos responder a perguntas muito elementares tais como “quantas armas foram financiadas pela União aos Estados e ao DF nos últimos anos?”.
Em março de 2023, o MJSP publicou uma primeira portaria que possibilitou a alteração dos planos de aplicação, atendendo a demanda dos novos gestores estaduais que haviam assumido suas posições recentemente. A ideia foi reduzir a burocracia, conferir mais fluidez e potencializar a efetividade da execução dos recursos. Igualmente, era preciso pensar como seria dali para frente e repensar a governança orçamentária do FNSP. Os resultados desses meses de trabalho foram publicados no DOU do dia 07 de agosto, em três portarias assinadas pelo ministro Flávio Dino.
Os três atos, resumidamente, tratam a) da divulgação dos valores que cada Estado e o Distrito Federal receberão dos 1,009 bilhão disponíveis neste ano de 2023 para a transferência obrigatória na modalidade FAF; b) dos procedimentos, requisitos e prazos que devem ser seguidos para se ter acesso a esses recursos; e c) das áreas temáticas, ações e itens que podem ser financiados com esse dinheiro.
Esse tripé normativo é o que vem estruturando o repasse FAF nos últimos anos. A arquitetura institucional foi atualizada, incorporando mudanças que tiveram como fios condutores a modernização da governança orçamentária do FNSP e, principalmente, a recuperação do poder de indução de políticas públicas da União, o núcleo do próprio SUSP. Todas as ações desenvolvidas e apresentadas pelos Estados e o Distrito Federal devem estar claramente vinculadas às metas e às ações estratégicas do Plano Nacional de Segurança Pública e ao Plano Estadual ou Distrital de Segurança Pública. Passou a ser exigida estrutura mínima dedicada exclusivamente à execução dos recursos do FNSP nos Estados e no DF.
Os resquícios da lógica de convênio foram retirados e conferimos foco em três temas centrais na conjuntura atual. Assim, o eixo “fortalecimento das instituições de segurança pública e defesa social” que, na prática, comportava toda e qualquer demanda das instituições de segurança, foi substituído pela área temática “redução de mortes violentas intencionais”, para a qual serão destinados 80% dos recursos repassados na modalidade FAF em 2023 e 2024. Isso significa que, apenas em 2023, o investimento de mais de 800 milhões de reais em ações como o fortalecimento da investigação de homicídios, a redução da letalidade policial e o controle de armas de fogo. Todos os temas serão acompanhados por indicadores próprios, que condicionarão os repasses dos anos seguintes. A gestão por resultados deverá ser financiada com recursos do FNSP, reconhecendo a necessidade de incorporar elementos básicos de formulação, acompanhamento e avaliação de políticas públicas nessa área. Nunca antes na história deste país houve um investimento deste vulto exclusivamente com este foco.
O eixo “valorização dos profissionais de segurança pública” foi substituído pela área temática “melhoria da qualidade de vida dos profissionais de segurança pública”, que deve ter foco especial na atenção biopsicossocial e à saúde mental. Serão mais de 100 milhões de reais destinados, em 2023, para cuidar de uma das maiores tragédias que cercam nossos profissionais, o adoecimento mental, que produz não apenas altos índices de suicídio como dependência química e absenteísmo.
Outra inovação foi a inclusão do enfrentamento à violência contra as mulheres no FNSP. Indo além dos 5% previstos na Lei do Fundo desde meados de 2022, a nova portaria do MJSP ampliou esse percentual para 10%, deixando claro o seu compromisso com a pauta. Estamos falando em mais de 100 milhões de reais que podem ser utilizados, por exemplo, para o fortalecimento das DEAMs e das Patrulhas Maria da Penha, além de observatórios, elaboração de diagnósticos e estudos.
Outra mudança importante do novo arcabouço normativo foi a criação de um rol de itens financiáveis com recursos do FNSP. A exemplo do que ocorre no SUS, pretendemos conseguir avançar no longo caminho da especificação dos serviços e o rol de itens financiáveis é um primeiro passo. Busca-se, com isso, tanto induzir a especialização da execução da despesa em torno de itens (bens e serviços) que poderão ser compartilhados por meio do ComprasSUSP, como induzir o foco naqueles itens centrais para os objetivos de cada uma das áreas temáticas.
Esses são apenas os primeiros passos. Conhecer e compreender essa nova mecânica e projetar aonde queremos chegar em termos de governança orçamentária é um convite aberto a todas e todos. Apenas juntos, talvez, possamos começar a fazer o SUSP sair do papel e, oxalá, possamos virar a página na segurança pública brasileira.
ISABEL FIGUEIREDO - Diretora do Sistema Único de Segurança Pública da SENASP/MJSP.
MÁRCIO JÚLIO DA SILVA MATTOS - Coordenador-Geral de Gestão e Governança do Sistema Único de Segurança Pública da SENASP/MJSP.