ARTICULISTAS DESAPARECIDOS NO BRA
DESAPARECIDOS NO BRASIL: DA CONTAGEM DE REGISTROS ÀS RESPONSABILIDADES DO ESTADO
Em 2022, o Brasil registrou 74.061 pessoas desaparecidas, média de 203 desaparecimentos diários, aumento de 12,9% na comparação com o ano anterior.
27/08/2023 12h07 Atualizada há 1 ano
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/

Em 2022, o Brasil registrou 74.061 pessoas desaparecidas, média de 203 desaparecimentos diários. Do total de registros, 46,7% se concentram na região Sudeste, em muito puxados pelo estado de São Paulo, que registrou 20.411 ocorrências. Em seguida a região Sul, com 22,3% do total, cujo destaque é o Rio Grande do Sul, em que os registros alcançaram a marca de 6.888 ocorrências. A região Nordeste, por sua vez, concentrou 14,8% do total, seguida pelas regiões Centro-Oeste e Norte, que concentraram 9,7% e 6,5%, respectivamente.

A despeito de São Paulo concentrar quase 30% dos números absolutos dos registros de desaparecidos, é o Distrito Federal que se destaca quando analisamos a taxa por 100 mil habitantes. Com 83,3 por 100 mil, é a maior taxa do país e mais do que o dobro da nacional, que fica em 32 por 100 mil, como sinaliza o gráfico abaixo.


Isso não significa, entretanto, que somem mais pessoas no DF do que no resto do país. Na primeira edição do Mapa dos Desaparecidos analisamos, brevemente, os casos no Distrito Federal a partir de uma informação constatada na análise dos registros de ocorrência: a Polícia Civil do DF é a única que vincula o registro de desaparecimento ao registro de localização no próprio Boletim de Ocorrência. Em outras palavras, quando uma pessoa é localizada seu registro de desaparecimento é retirado da base e adentra, apenas, nas estatísticas de localização. Dessa forma, a polícia sabe exatamente quem continua desaparecido (FBSP, 2023).

O que nos chama atenção ao compararmos as taxas é que em apenas dois estados, Goiás e Minas Gerais, os registros de desaparecimento diminuíram entre 2021 e 2022, com retração de 8,8% e 1,2%, respectivamente. No restante do país, todos os estados viram seus registros aumentarem, com destaque ao Amapá, cujo crescimento foi de 78,4%. No Acre, Roraima e Bahia o crescimento também foi expressivo, com aumento de mais de 50%. Em nível nacional, os registros de desaparecimento cresceram em 12,9% quando comparados ao ano anterior.

Ao mesmo tempo, o número absoluto dos registros de localização também cresceu. Se em 2021 eles totalizaram 33.794, em 2022 eles atingiram 39.957, aumento de 18,2%. Não é possível dizer, entretanto, se as pessoas localizadas em 2022 desapareceram no referido ano ou em períodos anteriores. Não é possível dizer, também, se os registros de localização foram abatidos das ocorrências dos desaparecimentos, com exceção do Distrito Federal, mencionado anteriormente.

Analisando a série histórica é possível observar a queda acentuada dos registros no ano de 2020 em comparação ao período anterior, considerando que este foi o ano marcado pelo início da pandemia de Covid-19. Com o isolamento social, o número de idas à delegacia para registrar o desaparecimento pode ter diminuído, embora em vários estados seja possível registrá-lo, como é o caso de São Paulo, via boletim eletrônico. 

 

Se em 2019 a média de desaparecimentos diários foi de 218 casos, em 2020 o número cai para 172 e em 2021 fica em torno de 179. Em decorrência da pandemia, nossa hipótese é que os registros no biênio caíram não porque as pessoas pararam de desaparecer, mas pelo impacto do isolamento social na comunicação do fenômeno às delegacias de polícia. Em 2022 os números retornam ao padrão pré-pandemia, uma vez que as medidas de lockdown não mais se aplicam e a circulação de pessoas não se restringe às atividades essenciais, fator que pode ter impulsionado o aumento no número de registros.

A militância da sociedade civil na busca pelos desaparecidos

A questão do desaparecimento começou a ser discutida na América Latina antes de virar pauta na política internacional. As Mães da Praça de Maio, na Argentina do final dos anos 1970, chamavam a atenção aos desaparecidos políticos que, assim como em muitos países do continente latino-americano, sofreu com a prática enquanto tática de repressão nos períodos da ditadura. 

O assunto ganha destaque internacional 20 anos depois, com a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados da ONU, em 1992. Dois anos depois, em 1994, a Organização dos Estados Americanos firma a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, mas a sociedade civil, em especial os familiares de vítimas da violência, já se mobilizava em torno da temática (Leal, 2019).

No Brasil, as movimentações giram primeiro em torno do desaparecimento de crianças: em 1992 surge o Movimento Nacional em Defesa da Criança Desaparecida (Cridespar), que auxiliou na criação do Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas (Sicride), no Paraná (Leal, 2019). Em 2004, a lei estadual 14.493/14 determina o registro e busca imediata de crianças pelas autoridades policiais, sem que se aguardem 24 ou 48 horas para o início da busca, legislação que, no ano seguinte, se torna lei federal – 11.259/2005, além de alterar o artigo 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que criminaliza o policial e/ou a delegacia que não registrar e não iniciar a busca imediata de crianças e adolescentes desaparecidos (Idem.).

Entretanto, pouco se discute, na legislação, sobre os outros tipos de desaparecimento, inclusive o forçado, embora a Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha responsabilizado o Brasil, em 2010, a tipificar o desaparecimento forçado enquanto crime (Araújo, 2016). O que se tem, até o momento, é o Projeto de Lei 6.240/2013, que tipifica o crime de desaparecimento forçado e o torna hediondo. O Projeto aguarda apreciação do Plenário.

Pouco se discute, na verdade, sobre o desaparecimento em geral. Como mostramos na primeira edição do Mapa dos Desaparecidos no Brasil, até 2019 o conceito de desaparecido não existia na legislação brasileira (FBSP, 2023). Ele só foi definido com a Lei 13.812/19, a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, em que o desaparecido é “todo ser humano cujo paradeiro é desconhecido, não importando a causa de seu desaparecimento, até que sua recuperação e identificação tenham sido confirmadas por vias físicas ou científicas”.

Todavia, a causa do desaparecimento, a despeito do que define a legislação, importa. Só em 2022 o Brasil registrou 74.061 desaparecidos, uma média de 203 desaparecimentos diários, que podem e são atravessados por diversas questões: desde aqueles que optam por romper o vínculo com a família e amigos por livre espontânea vontade, aqueles que foram vítimas de acidentes ou desastres naturais, aqueles que se perderam por questões de saúde mental e até vítimas de sequestros ou aqueles provocados pela ação de agentes estatais.

Enquanto fato atípico, o desaparecimento não constitui crime e, portanto, não gera inquérito policial (Ferreira, 2013). Seu registro é administrativo e provisório, até que a elucidação do caso, ou não, o reclassifique dentro das ocorrências policiais (Araújo, 2016). Neste sentido a literatura identifica que, uma vez não gerando inquérito, a ocorrência não é prioridade no trabalho policial (Ferreira, 2013; Araújo, 2016) e, por sua vez, acaba sendo negligenciada por preconcepções que buscam explicar o desaparecimento a partir de algumas hipóteses: morte, prisão, internação e envolvimento com o tráfico de drogas para homens (Araújo, 2016) e, para mulheres, o envolvimento com a prostituição ou fuga com o companheiro (Ferreira, 2011 apud Araújo, 2016).

Se o desaparecimento não envolver questões criminais (como homicídio, feminicídio, sequestro etc.), sua gestão será atribuída aos familiares (Ferreira, 2013) e à assistência social: é uma questão de família, não de polícia e, portanto, a ação policial é desnecessária e improcedente (Idem.). Isso se reforça no fato de não termos, até o momento, um Procedimento Operacional Padrão (POP) na investigação dos desaparecidos (FBSP, 2023), com exceção ao de crianças, como é o caso do Sicride, no Paraná.

Não ter um procedimento inicial recomendado às investigações de desaparecidos é uma problemática que se alimenta da falta de parametrização acerca do tipo de desaparecimento. Embora a lei 13.812/19 seja um avanço na discussão do tema, ela não especifica as causas do desaparecimento, que pode ser voluntário (em que a pessoa, maior e capaz, decide romper os vínculos com amigos e familiares); involuntário (vítimas de desastres naturais, acidentes, pessoas com questões de saúde mental e crianças que se perdem de seus responsáveis, se afastando sem dispor das condições necessárias para sinalizar a ação); ou forçado (pessoas que são afastadas, forçadamente, por violência, fraude, coação ou grave ameaça) (Carneiro, 2022 apud FBSP, 2023).

O fato de não sabermos o tipo do desaparecimento dificulta no estabelecimento do perfil, para além do divulgado na primeira edição do Mapa dos Desaparecidos (FBSP, 2023), que publicou informações sobre idade, sexo e raça/cor de quem some e de quem é localizado. No triênio 2019-2021, dos mais de 300 mil registros analisados, 62,8% dos desaparecidos são homens, 29,3% são jovens entre 12 a 17 anos e 54,3% são negros. A taxa média de adolescentes desaparecidos, 84,4%, é quase 3 vezes superior à média nacional, de 29,5%. 

Além disso, impede a formulação de políticas públicas direcionadas às espécies do desaparecimento. Tendo a definição prevista em lei é possível oferecer substratos ao debate de forma eficiente e, mais do que isso, auxiliar na investigação: com a indicação dos tipos de desaparecimento podemos desenvolver protocolos de investigação específicos para cada um ao invés de tratarmos as ocorrências simplesmente enquanto procedimentos administrativos.

Desafios e perspectivas

No dia 14 de julho de 2013 Amarildo Dias de Souza desapareceu em uma comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro. Sem notícias a família soube, tempos depois, que ele fora detido pela polícia e levado à UPP (Unidade da Polícia Pacificadora). O resultado do interrogatório culminou na condenação de 12 policiais militares, inclusive um major e um tenente, mas o corpo de Amarildo, até hoje, não foi encontrado.

Dez anos depois de seu desaparecimento, o caso continua emblemático. Dez anos depois e sua família ainda não teve direito ao luto. Amarildo soma-se a outros tantos casos de desaparecimento cuja resposta é o silêncio. Em que pese a condenação dos militares enquanto responsáveis por sua morte, outros tantos casos classificados como desaparecimento não têm desfecho.

Para que o Estado possa, efetivamente, dar uma resposta às vítimas do desaparecimento (os familiares), e que o registo deixe de ser apenas um procedimento administrativo, a lei 13.812/19 precisa sair do âmbito da política e se tornar política pública. As previsões da lei, para além da criação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, precisa garantir a cooperação entre autoridades federais e estaduais para o compartilhamento e integração dos sistemas de informação dos órgãos públicos, além de orientar e adotar um procedimento padrão no preenchimento dos registros de ocorrência, que precisam conter o máximo de detalhes capazes de individualizar a pessoa desaparecida (FBSP, 2023).

Isso depende, também, da capacitação dos profissionais que trabalham na ponta. Os agentes policiais precisam ser capacitados não só para o bom preenchimento do registro, mas também na condução da ocorrência: desde o acolhimento das famílias cujo ente está desaparecido, até a conclusão do caso, a assistência precisa ser interdisciplinar. Além disso, a adoção das espécies do desaparecimento é urgente para a melhoria das investigações, das estatísticas e das devolutivas do Estado à sociedade.

* Este texto foi originalmente publicado na 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra do documento pode ser acessada no https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/

Notas:

Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mapa dos desaparecidos no Brasil. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. 

O desaparecimento forçado é definido como “a prisão, o sequestrou ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei”. Para mais informações, ver Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, 2010.

Leal, Eduardo Martinelli. “Naquela época não se ouvia falar de desaparecido”: família e maternidade na militância do desaparecimento de pessoas no Brasil. Mana, 25(3): 605-634, 2019.

O Sicride foi criado pela Resolução nº 698, de 31/07/1998, da Secretaria de Estado da Segurança Pública, regulamentado pela Portaria nº 1.315/1995, de 10/08/1995, do Departamento de Polícia Civil. Está incumbido de centralizar todos os registros de ocorrência que envolvam o desaparecimento de crianças no Paraná, apurar os fatos e prosseguir com a instrução de inquéritos policiais já instaurados.

Araújo, Fábio Alves. “Não tem corpo, não tem crime”: notas socioantropológicas sobre o ato de fazer desaparecer corpos. Horizontes Antropológicos, 22(46): 37-64, 2016.

Brasil. Lei nº 13.812, de 16 de março de 2019.

Ferreira, Letícia Carvalho de Mesquita. “Apenas preencher papel”: reflexões sobre registros policiais de desaparecimento de pessoa e outros documentos. Mana 19(1): 39-38, 2013. 

O Sicride, da Polícia Civil do Paraná, adota um fluxo próprio na investigação de crianças desaparecidas. Além de ter um Boletim de Ocorrência específico para estes casos, se comunica com as outras forças de segurança e instituições, como as policiais Militar e Federal, além do Conselho Tutelar. O protocolo é próprio da PCPR e atua no âmbito do território estadual.

TALITA NASCIMENTO * Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e graduada em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo.