Para evitar a explosão do consumo, é fundamental que se discutam políticas de redução de danos e desestímulo ao uso da maconha, assim como tem ocorrido com o tabaco e o álcool, com resultados bastante expressivos na redução do consumo, sem o recurso da tutela penal.
Nas últimas décadas, dezenas de países ao redor do globo têm optado pela descriminalização do porte para consumo de substâncias ilícitas, por considerarem que a abordagem da questão não deve ocorrer pela via criminal, em face de sua relativa ineficiência na redução das taxas de consumo e dos danos aos quais são submetidos os usuários ao ingressarem no sistema penal. Somente na América Latina já existem cerca de vinte países que adotam políticas de drogas com o viés antiproibicionista. No entanto, na contramão dessas mudanças, a legislação brasileira, não obstante tenha despenalizado o porte para uso pessoal no ano de 2006, ainda criminaliza a conduta, com fundamento no art. 28 da Lei 11.343/06[1], prevendo as penas de advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Assim, as condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, são tipificadas. O que mudou, em comparação com a lei anterior, foi apenas a resposta penal reservada ao usuário, a qual não pode mais ser a do encarceramento, fato que torna a legislação de drogas a única no ordenamento jurídico brasileiro com essa peculiaridade. Para todos os demais delitos a lei penal prevê a pena de prisão, que no caso concreto poderá ser substituída por medidas alternativas, dentro dos critérios estabelecidos em lei. De todo modo, pela lei anterior já era praticamente impossível a prisão do usuário, tendo em vista que se tratava de delito de menor potencial ofensivo, com pena máxima de até 2 anos de prisão, o que obrigava, em caso de condenação, à conversão em pena alternativa, ou até mesmo à realização de transação penal, quando os casos de porte para uso pessoal passaram a ser tratados pelos Juizados Especiais Criminais.
A lei atual previu a despenalização do usuário, e não a descriminalização. Esses conceitos possuem significados distintos, ainda que por vezes se confundam. No entanto, de maneira muito objetiva, a despenalização consiste na adoção de pena mais branda, enquanto a descriminalização consiste em retirar do âmbito do direito penal a questão, remetendo-a para outras áreas do direito e das políticas públicas. Ou seja, quando há a descriminalização, o porte e o consumo de determinadas quantidades deixam de ser crime, de modo que não há mais punição no âmbito penal, ainda que em alguns modelos descriminalizantes seja possível a aplicação de sanções no âmbito civil ou administrativo, como ocorre com as multas de trânsito, quando se sanciona o consumo da substância em determinados locais, por exemplo.
A descriminalização pode ser introduzida em um determinado ordenamento jurídico mediante alteração legal, via Poder Legislativo, mas também pode decorrer de decisões do Poder Judiciário, que alteram o entendimento geral sobre o tema, como quando a Suprema Corte de um país julga a inconstitucionalidade da criminalização do porte para consumo pessoal, por ferir o princípio da lesividade ou da ofensividade, ao não lesionar bem jurídico alheio.
No contexto brasileiro, a decisão sobre essa questão está nas mãos do Poder Judiciário, de modo que está em curso no Supremo Tribunal Federal a apreciação do Recurso Extraordinário 635659, com caráter de repercussão geral – o que significa que o entendimento do STF neste julgamento deverá balizar casos semelhantes em todo o país – e que discute a inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal, prevista no art. 28 da Lei 11.343/06.
O julgamento, iniciado em 2015 com relatoria do ministro Gilmar Mendes, recebeu naquele mesmo ano três votos favoráveis no sentido da descriminalização e da determinação de critérios quantitativos para diferenciar usuários de traficantes, contemplando o voto do relator todas as drogas consideradas ilícitas, e tendo restringido os ministros Luiz Roberto Barroso e Edson Fachin seus posicionamentos apenas em relação à maconha, tendo o ministro Barroso estabelecido em seu voto como parâmetro objetivo de diferenciação entre tráfico e uso a quantidade de até 25 gramas de maconha para consumo pessoal. O próximo ministro a votar seria Teori Zavaski, que realizou um pedido de vista e veio a falecer no ano de 2017.
Após cerca de sete anos com pedido de vista pelo ministro que sucedeu Teori, Alexandre de Moraes, a atual presidente da Corte, ministra Rosa Weber, colocou em pauta a continuação do julgamento, o qual foi retomado no último dia 2 de agosto, com o voto do ministro Alexandre de Moraes, que acompanhou as decisões anteriores no sentido da descriminalização e da definição de critérios quantitativos de diferenciação entre as condutas de consumo pessoal e tráfico, também apenas no que diz respeito à maconha. A fundamentação do voto do ministro Alexandre foi pautada em estudos que apontam os efeitos nefastos da política de drogas brasileira, a qual nos últimos 17 anos acarretou um crescimento sem precedentes nas taxas de encarceramento de mulheres e homens, majoritariamente jovens, pretos, moradores de regiões periféricas, com quantidades pequenas de entorpecentes e sem comportamento violento no momento da abordagem policial.
Em seu voto, o ministro Alexandre destacou, com base em pesquisas sobre o tema, que desde a entrada em vigor da atual Lei de Drogas, a despenalização não foi bem recebida pelos policiais, promotores, juízes e desembargadores, o que fez com que mais pessoas passassem a ser enquadradas como traficantes e menos como usuárias, fato que acarretou um aumento do encarceramento no Brasil, que atualmente conta com mais de 830 mil presos e constitui a terceira maior população carcerária do mundo. De acordo com Alexandre de Moraes, por não determinar critérios objetivos de diferenciação entre usuários e traficantes, a legislação de drogas abriu margem para a atuação discricionária dos atores responsáveis pela persecução penal no país, de modo que esses tendem a tipificar as condutas de maneira distinta, bem como aplicar penas mais duras, a depender de variáveis como a etnia, gênero, nível de escolaridade, renda, idade e local em que se dá o fato. Por isso, para preservar o princípio da isonomia e garantir que a lei seja aplicada de maneira igual para todos, o voto do ministro argumentou pela definição de parâmetros objetivos, ao propor que sejam presumidos como consumidores, e descriminalizados, indivíduos que portem até 60 gramas de maconha, ou que cultivem até 6 plantas fêmeas.
Em seguida, o relator, ministro Gilmar Mendes, que havia argumentado pela descriminalização sem distinção acerca do tipo de substância ilícita, pediu o adiamento do julgamento, em vista dos novos argumentos apresentados, na tentativa de construção de uma solução de consenso. De qualquer forma, tudo indica que a decisão do STF poderá marcar um importante avanço da pauta antiproibicionista no país. Ao descriminalizar consumidores e determinar critérios de diferenciação objetivos entre tráfico e uso, a discricionariedade dos atores da administração da justiça criminal restaria limitada, o que diminuiria a seletividade nas incriminações pelo tipo penal. Além do mais, por se tratar de um julgamento com caráter de repercussão geral, caso seja determinada a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06, será possível apurar inflexões nas taxas de encarceramento por tráfico no país – crime com a maior incidência nos aprisionamentos – na medida em que atualmente existem milhares de mulheres e homens condenados como traficantes e presos por quantidades inferiores a 25 gramas de maconha.
Restam, no entanto, duas questões a serem enfrentadas. A primeira diz respeito ao fato de que o que fundamenta a descriminalização pelo Poder Judiciário é o princípio da lesividade ou ofensividade, que não se aplicaria apenas para a maconha, mas valeria também para todas as demais drogas. Como justificar, portanto, que o princípio seria aplicado, a depender da substância consumida? Nesse sentido, mesmo que a opção do STF seja por descriminalizar o porte somente da maconha, essa decisão abriria a possibilidade de questionamento em relação a outras substâncias consideradas proibidas pela portaria 344/98 da ANVISA, atualizada periodicamente, que estabelece quais são as substâncias consideradas de uso controlado, e sujeitas, portanto, às penas da Lei 11.343/2006.
A outra questão diz respeito aos efeitos da descriminalização da maconha sobre o consumo e o sistema de saúde pública. Muitos dos que se opõem à medida alegam que, com a redução da reprovação da conduta do usuário, retirando-a do âmbito penal, o efeito seria um aumento significativo do consumo, acarretando o aumento de casos em que o uso da substância provoca psicoses e outros efeitos colaterais. A preocupação é legítima, mas não invalida a necessidade de adotar políticas não proibicionistas no Brasil, seguindo a tendência mundial. Isso porque o que se pretende com a descriminalização, como tem ficado explícito nos votos dos ministros do STF, é combater o efeito colateral do encarceramento em massa e do tratamento desigual, de acordo com o perfil do acusado.
Para evitar a explosão do consumo, em um novo contexto, é fundamental que se discutam políticas de redução de danos e desestímulo ao uso da maconha, assim como tem ocorrido com o tabaco e o álcool, com resultados bastante expressivos na redução do consumo sem o recurso da tutela penal. A descriminalização terá que ser acompanhada, necessariamente, do debate sobre a regulamentação do acesso à substância, em mercado regulado que poderá ser um caminho para o esvaziamento do mercado ilegal, afetando a receita das facções criminais, e acompanhado de medidas para o desestímulo ao consumo e o sancionamento administrativo das condutas que facilitarem o acesso à droga por menores de idade ou em determinados locais públicos ou circunstâncias, como na condução de veículo automotor. De qualquer forma, estará aberto o caminho para que encontremos soluções mais racionais e adequadas para um problema que, pelo proibicionismo, somente tem se agravado e viabilizado a ampliação dos mercados ilegais no Brasil.
[1] Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
*1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
* 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
* 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
* 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
* 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
* 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I – admoestação verbal;
II – multa.
* 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
LAURA HYPÓLITO - Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS.
RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO - Sociólogo, coordenador do Observatório de Segurança Pública da Escola de Direito da PUCRS.