Em 14 de julho passado, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Amazonas (SEAP-AM) publicou uma portaria com uma das decisões mais radicais que uma gestão prisional pode tomar: a suspensão de visitas de familiares e, ainda, por 30 dias. Essa ação expressa bem uma mudança nas relações de força do sistema carcerário amazonense, iniciada com a chacina de janeiro de 2017, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj).
A justificativa para a suspensão é a mesma para um conjunto extenso de medidas tomadas ao longo dos últimos seis anos: “a necessidade de preservar a segurança interna e a disciplina dos estabelecimentos prisionais”. Dias antes, um servidor de uma das empresas cogestoras teve o carro baleado ao sair de uma unidade prisional. Evento absolutamente raro para o cotidiano amazonense. Pouco importa: mais uma vez, as atenções se voltaram para os fluxos de entrada e saída do sistema prisional.
Pode-se dizer que é justamente sobre esses fluxos que incidiram as principais novidades da gestão prisional desde que a SEAP-AM passou a ser comandada por policiais militares, em 2017. Um dos focos principais de controle foram os aparelhos de celular. “Por isso não tem mais mortes” – foi o que disse um gestor em conversa durante uma inspeção em 2021. Desde a chacina de 2019, ocorrida em quatro prisões de Manaus, a fiação elétrica foi retirada da maioria dos pavilhões – aqueles chamados pelas pessoas presas de “pavilhões do sofrimento”. A justificativa formal foi impedir o carregamento de aparelhos de celular. Medida “legalizada” pela Resolução nº 16, de 10 de junho de 2021, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) – que contraria as Regras de Mandela, que, por sua vez, tem força de lei. Soma-se a isso a criação do Grupo de Intervenção Penitenciária (GIP), que possibilitou a realização de revistas cotidianas, humilhantes e violentas nas celas.
Para ser mais preciso, nas celas não há sequer lápis e papel. Cartas são proibidas, mesmo para quem não recebe visitas. A grande maioria das pessoas presas sobrevive numa espécie de regime disciplinar diferenciado (RDD) com superlotação: 22 horas de confinamento em celas sem ventiladores (numa cidade cuja temperatura máxima média supera 32º); racionamento severo de água e produtos de higiene e limpeza; revezamento de banho de sol entre pavilhões; e, ainda, revezamento para visitas de familiares, que, de semanais, passaram a ser quinzenais. Familiares que, como se pode imaginar, também não podem entrar e sair com papeis, incluindo os documentos do processo penal. Em conjunto, essas medidas instituem um regime humilhante e adoecedor de penúria material e afetiva.
E as “regalias” para “lideranças”? Não parece ser o caso, uma vez que estão separadas e perigosamente misturadas em um pavilhão chamado pela própria administração de “RDD”. Os “privilégios”, como ventiladores e celas sem superlotação, são reservados às pessoas inscritas em “programas” de trabalho, selecionadas justamente pela ausência de vínculos com “facções”, como por exemplo presos e presas provisórios (para quem trabalhar não implica remição de pena) e homens acusados de estupro e feminicídio.
A suspensão das visitas em um contexto de controle minucioso da circulação interna e externa de pessoas, objetos e informações comunica duas ideias. Primeiro – e novamente desde 2017 – a administração se resguarda ao direito de punir um conjunto de pessoas presas por indisciplinas individuais. É o que se chama de “castigo coletivo”. Ação absolutamente ilegal, sustentada em portarias que citam decisão do STF em letras garrafais: “OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO”. Argumento cuja aplicação ainda aguarda, em Manaus, o questionamento da Defensoria Pública ou do Ministério Público.
Em segundo lugar, a suspensão das visitas comunica a ideia de que informações criminosas circulam por meio de familiares, uma imensa maioria de mulheres pobres, negras, indígenas e periféricas. O castigo coletivo se estende a elas e as coloca em posição de suspeitas. Uma suspeição já bem conhecida por todas e que, além de intensificar as técnicas de revista durante as visitas, vem direcionando investigações policiais e de ministérios públicos. Sim, o tão defendido investimento em “inteligência” tem servido para perseguir e prender mulheres racializadas e pobres – e ainda mais empobrecidas por um processo que talvez possa ser definido como espoliação penal.
Ao fim, a suspensão das visitas é uma demonstração radical de poder que expressa o deslocamento mais importante no sistema carcerário do Amazonas: a passagem de uma administração penitenciária público-privada para militar-privada. E como as malhas do sistema carcerário não se limitam ao lado de dentro das prisões e das carceragens, esse deslocamento diz muito sobre a natureza da “guerra” que ordena a vida social urbana e ribeirinha do maior estado do Brasil, sempre lembrado pela extensão de sua “zona de fronteira”.
Seja entre gestores/as, seja entre operadores/as do sistema de justiça, seja entre familiares e sobreviventes, parece não haver muitas dúvidas de que, hoje, quem “manda” no sistema carcerário do Amazonas, sobretudo na capital, onde se concentra a maioria da população carcerária, “é a Polícia Militar”. Uma afirmação que se desdobra, naturalmente, em uma pergunta: se o domínio dentro das prisões pode ser considerado como um bom parâmetro para medir as relações de poder que ordenam mercados, territórios e mortes do lado de fora, será mesmo possível afirmar o domínio das “facções” nas ruas e rios do estado? O controle da circulação de quem sobreviveu às penitenciárias por meio de tornozeleiras eletrônicas, monitoradas pela própria PM, também nos impõe uma pergunta sobre sua real utilidade.
Mas há ainda algo mais a ser notado na suspensão das visitas. Algo que familiares vêm dizendo há muito tempo: se a punição se estende para seus corpos, então o sistema carcerário e a justiça penal não administram somente a vida de quem cumpre uma pena ou aguarda um julgamento. A contagem da população carcerária do Amazonas não se limita a cerca de 13 mil pessoas. Ela deve ser multiplicada. Considerando uma estimativa baixa de quatro familiares por pessoa presa, esse número salta para 65 mil em um estado com pouco menos de 4 milhões de habitantes. Nessa nova contagem, não temos mais uma taxa de 337 pessoas presas por 100 mil habitantes, mas de 1.684 por 100 mil. Quantas pessoas seriam(os) se contarmos, também, todas as pessoas que já passaram por esse sistema, que sobreviveram a ele e que guardam suas marcas no corpo, na mente e nas condições de vida?
Se é possível dizer – como disse o Ministro da Justiça e da Segurança Pública uma semana após a suspensão das visitas – que vivemos uma “crise” no sistema penitenciário do Amazonas, esta não se deve à “insegurança”. Ao contrário, ela existe por excesso de “segurança” e ausência de cuidado, inclusive com familiares. Mas isso já não é uma manchete, é o nome do jornal. A transferência de homens presos para presídios federais – demandada pela SEAP-AM e aceita pelo mesmo ministro – é uma notícia tão ordinária quanto eficaz para garantir a promoção de jovens pobres à posição de “lideranças” locais. Os negócios e mercadorias ilegais não param de fluir, apenas renovam sua força de trabalho, alternam seus caminhos e oscilam em seus valores – inclusive na circulação entre o lado de dentro e lado de fora das prisões.
FABIO MAGALHÃES CANDOTTI - Professor do Departamento de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas; Articulador da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas e do Coletivo de Familiares e Amigos de Presos e Presas.