DIREITO EM PAUTA AGENTE DA DITADURA
STJ diverge sobre prescrição de crimes em ação contra coronel Ustra.
Em 2012, Ustra foi condenado a pagar R$ 50 mil a cada uma das autoras pelos excessos cometidos. A sentença registrou que o comandante do DOI-Codi participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes. Com isso, teve a culpa reconhecida pelo sofrimento infligido.
28/08/2023 14h30
Por: Carlos Nascimento Fonte: conjur.com.br/

A possibilidade de o ex-coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra responder a ação civil indenizatória pela prisão, tortura e desaparecimento do jornalista Luiz Eduardo Merlino durante a ditadura militar causou divergência na 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

Na terça-feira (8/8), o colegiado começou a julgar recurso ajuizado pela ex-companheira e pela irmã de Merlino, que em 2010 ajuizaram ação pedindo indenização pelos danos morais causados pela morte presumida em 1971 no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo.

Em 2012, Ustra foi condenado a pagar R$ 50 mil a cada uma das autoras pelos excessos cometidos. A sentença registrou que o comandante do DOI-Codi participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes. Com isso, teve a culpa reconhecida pelo sofrimento infligido.

Ustra morreu em 2015, enquanto aguardava julgamento do recurso. Em 2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que a possibilidade de pedir indenização, embora não atingida pela Lei de Anistia de 1979, já estava prescrita. O marco inicial considerado foi a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Nesta quarta, o relator do recurso no STJ, ministro Marco Buzzi, votou para aceitar o recurso especial para afastar a prescrição. Assim, o caso voltaria ao TJ-SP para continuidade de julgamento da apelação. Em sua opinião, o caso, por envolver tortura — crime contra a humanidade —, tem reparação civil imprescritível.

Abriu a divergência a ministra Isabel Gallotti. Para ela, a ação não poderia ser ajuizada contra Ustra, mas sim contra o Estado brasileiro. Se superada essa questão, defendeu que a pretensão indenizatória pode prescrever justamente por se tratar de um processo que tem como alvo um agente estatal. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do relator.


 Para ministro Buzzi, reparação civil por crime contra a humanidade é imprescritível).

Quem processar?

O tema da legitimidade de Brilhante Ustra para responder à ação indenizatória pelos atos praticados na condição de agente estatal não chegou a ser analisado pelo relator. Ele entendeu que a questão estaria preclusa porque não foi ventilada em contrarrazões, nem analisada pelo TJ-SP.

A ministra Isabel Gallotti discordou. Apontou que a legitimidade não precisaria ser invocada porque, sendo matéria de ordem pública, pode ser levantada pelo STJ até mesmo de ofício. Assim avançou sobre a análise para concluir que o ex-coronel não poderia responder à ação.

A posição se baseou no julgamento do Recurso Extraordinário 1.027.633, em 2019, quando o Supremo Tribunal Federal firmou a tese de que a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado. Se condenado, o ente público poderá, no máximo, ajuizar ação de regresso contra seu agente, para ser indenizado pelo prejuízo.

Essa divergência foi registrada na 4ª Turma quando impôs ao ex-chefe da “lava jato”, Deltan Dallagnol, a condenação a indenizar Lula pelos abusos cometidos no episódio em que uma denúncia contra o petista foi espetacularmente divulgada, com uso de uma infame apresentação de PowerPoint. Por potencialmente ofender a jurisprudência do STF, a corte admitiu recurso contra o caso.

Que prescrição?

Na análise do ministro Marco Buzzi, a qualificação dos atos praticados por Ustra como crimes contra a humanidade impede o uso do instituto da prescrição, uma vez que houve gravíssimas violações de direitos fundamentais.

Esse entendimento reside no potencial ofensivo dos atos praticados, na afronta à moralidade e dignidade da pessoa humana, nos empecilhos criados pelo próprio Estado para investigação e no princípio da não-repetição, pelo qual se permitiria proteger a coletividade e a sobrevivência humana.


Ministra Isabel Gallotti abriu a divergência ao votar pela prescrição no caso concreto

O relator destacou que a Lei da Anistia, conforme julgou o Supremo Tribunal Federal, se restringiu à esfera penal e não estabeleceu qualquer salvaguarda em relação às pretensões indenizatórias, muito menos vedou a investigação, conhecimento e responsabilização dos agentes do Estado durante a ditadura.

Incide no caso, assim, a Súmula 547 do STJ, segundo a qual “são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar”.

“Tratando-se de ilícito contra a humanidade em razão de tortura praticada em contexto de violação sistematizada de direitos civis, a proteção judicial deve ser atemporal, sendo a conduta passível de investigação, punição e reparação a qualquer momento da história humana”, defendeu o ministro Buzzi.

Paz social

Já para a ministra Isabel Gallotti, a prescrição é possível e foi consumada. Ela afirmou que a Súmula 647 do STJ foi editada pela 1ª Seção, que julga temas de Direito Público, sob a perspectiva das ações ajuizadas contra o Estado, o qual pode ser responsabilizado.

Em sua análise, o entendimento não pode ser aplicado nas ações em que se pretende a responsabilização direta do agente político, por causar a perpetuação dos conflitos entre os indivíduos. No caso julgado, a condenação de Ustra recairia sobre seus herdeiros, por exemplo.

Isso significaria ignorar a luta histórica pela conquista da anistia, que, geral e irrestrita, permitiu a reabertura política e a redemocratização do país. Foi o que possibilitou, inclusive, a edição de leis nas quais o poder público assumiu a responsabilidade pelos atos de seus agentes e determinou o pagamento de indenização e reparações.

O voto divergente aderiu à fundamentação de um voto vencido da ministra Nancy Andrighi, em um julgamento em que a 3ª Turma do STJ entendeu justamente que Brilhante Ustra poderia ser processado na seara cível pelos atos ilícitos praticados durante a ditadura.

A ideia é que a eternização de conflitos entre particulares causa prejudica o ideal de conciliação e pacificação pretendido com o fim do regime militar, em uma espécie de jurisdicionalização da vendeta (vingança).

“No âmbito no Direito Privado, pretensão de imprescritibilidade atenta contra paz social, diversamente do que ocorre no âmbito do Direito Público”, disse a ministra Gallotti. “A intenção de imprescritibilidade no âmbito das relações privadas vai na contramão da proposta que ganhou a chancela do Congresso Nacional com Lei da Anistia”, destacou.

REsp 2.054.390