A decisão do plenário do STF de que as guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública não constitui, a princípio, nenhuma inovação jurídica. Reafirma o caráter constitucional de legislações anteriores que pressupunham tal princípio, quais sejam a Lei 13.022/2014 que estabelece o estatuto geral das guardas municipais e a Lei 13.675/2018 que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública. E, sob tal perspectiva, o Supremo consolida o amparo constitucional para que as Guardas não se limitem à vigilância do patrimônio público municipal, podendo agir para prevenir, inibir e coibir infrações penais ou administrativas e atos infracionais.
Entretanto, a amplitude do “prevenir, inibir e coibir infrações penais ou administrativas e atos infracionais” não está devidamente esclarecida pelo STF. Em alguns votos os ministros foram explícitos nesse sentido, como é o caso do de Alexandre de Moraes, que define o parâmetro do caráter policial das Guardas, qual seja, a prevenção e repressão de crimes e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais. Trata-se de atividade típica de segurança pública exercida na tutela do patrimônio municipal, em suas palavras. Mas tal questão não foi objeto de deliberação por parte dos demais Ministros do Supremo. Permanece em aberto a definição constitucional dos limites de atuação das Guardas Municipais comparativamente às Polícias Militares.
Tal limbo normativo tem sido terreno fértil para a consolidação de trajetórias institucionais das guardas municipais pautadas pela afirmação do modelo repressivo de policiamento. É notória a proliferação de estruturas organizacionais qualificadas no enfrentamento do tráfico de drogas e da criminalidade violenta. As denominadas Rondas Ostensivas Municipais (ROMU) são sintomáticas nesse sentido, sendo constituídas de profissionais com treinamento especializado, além de fardamento e armamento característicos de forças táticas de polícia. Em artigo referencial, Almir Oliveira Junior e Joana Alencar qualificam esse fenômeno como manifestação de ‘isomorfismo institucional’, de modo que há uma tendência de as Guardas copiarem estruturas organizacionais e formas de ação operacional típicas das Polícias Militares.[1]
Não é desejável que as Guardas Municipais se consolidem como polícias locais repressivas, compreendendo suas atribuições para além dos crimes e atos infracionais que atentem contra o patrimônio público municipal. Por um lado, cria-se um foco crônico de disputa de competências entre Guardas e Polícias Militares, acentuando a já notória frouxa articulação do sistema de segurança pública na sociedade brasileira. Por outro lado, a incorporação do viés repressivo de policiamento tende a acentuar os abusos no uso da força física na ação operacional com eventual repercussão nos níveis de letalidade.
A vocação das Guardas Municipais não é a repressão pura e simples da criminalidade em geral. Elas podem, e devem, ocupar um espaço institucional bastante relevante no sistema de segurança pública que é a PROTEÇÃO da comunidade, conforme delineado na Lei 13.022/2014. Isso significa Proteção Escolar, que tem como foco a violência no ambiente escolar; Proteção ambiental, que tem como foco as irregularidades cometidas contra áreas de proteção ambiental, especialmente as ocupações irregulares, a depredação ambiental e o despejo de entulhos; Proteção do espaço público, que se faz mediante patrulhamento preventivo em praças públicas, nas imediações de escolas municipais e de unidades de saúde, além das imediações de demais patrimônios municipais.
Infelizmente, a decisão do STF ignorou por completo a necessidade de afirmar uma vez por todas as competências preventiva e comunitária das Guardas Municipais. Ao se limitar ao reconhecimento de que estas compõem o sistema de segurança pública, o Supremo indiretamente ‘abre a porteira’ para que o modelo repressivo se afirme como identidade institucional prevalecente. Muitos podem argumentar, em sentido contrário, que o STF não autorizou os agentes dessas instituições a fazer abordagens e buscas pessoais, tampouco entrou em conflito com a decisão anterior do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o assunto. Lembremos que no ano passado a 6ª Turma do STJ definiu que as guardas não podem exercer atribuições das polícias civis e militares. Também estipulou que os agentes municipais não podem abordar e revistar pessoas, a não ser em situações absolutamente excepcionais.
É fato que o Supremo Tribunal Federal não transformou as guardas em “polícias militares municipais”. Por outro lado, o STF não impediu que as guardas se transformem em polícias militares municipais. E, do ponto de vista sociológico, esta é a tendência a prevalecer.
[1] OLIVEIRA JUNIOR, Almir de; ALENCAR, Joana Luiza Oliveira. Novas polícias? Guardas municipais, isomorfismo institucional e participação no campo da segurança pública. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 10, n. 2, 24-34, ago./set. 2016.
LUIS FLAVIO SAPORI - Professor da PUC-MG e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Edição Nº 199 - fontesegura.forumseguranca.org.br