Mais uma vez, o STF chancelou um consenso mínimo em torno da compreensão das Guardas Municipais como instituições fundamentais no campo da segurança pública municipal cidadã e do SUSP.
A decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) exarada em 28 de agosto de 2023, no contexto do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 995 proposta pela Associação das Guardas Municipais do Brasil (AGMB), firmou entendimento, com efeitos erga omnes (vinculantes), de que as Guardas Municipais (GMs) são instituição integrante do chamado Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). E me parece evidente que outra não poderia ser a conclusão da Egrégia Corte, à luz de uma interpretação sistemática, ou mesmo literal da Lei Federal n.º 13.022/2014 (“Estatuto Geral das Guardas Municipais”) combinada com a Lei Federal n.º 13.675/2018 (“Lei do SUSP”), vez que estas regulamentaram, respectivamente, os §§8º e 7º do art. 144/CF.
Inobstante, não se deve ignorar que a natureza eminentemente técnica do tema, demasiadamente hermética e pouco corriqueira no debate público, as disputas de poder inerentes ao campo, assim como o crescimento quali e quantitativo das Guardas Municipais (cerca de 1200 Municípios brasileiros possuem Guardas Municipais, totalizando um contingente de 125 mil profissionais, que já representa cerca de um quarto das polícias existentes no país, nos diferentes níveis federativos) tornam a referida decisão estratégica, seja para convalidar a sua legitimidade política e institucional, seja para garantir efetiva segurança jurídica da atuação das Guardas em face de decisões judiciais díspares adotadas pelas instâncias inferiores de jurisdição para situações fáticas comuns acerca do fazer das GMs. Por tudo isso, veio no momento azado, oportuno, a apreciação pela Suprema Corte da ADPF 995, conferindo a devida harmonização jurídico-constitucional sobre o assunto.
Analisando em perspectiva histórica, identifico cinco fases distintas por que passaram as Guardas até a consolidação do seu lugar de fato e de direito como parte da segurança pública brasileira, inobstante a necessidade ainda premente de reformas mais amplas e estruturais do campo da segurança pública e da justiça criminal, a saber:
De 1988 aos anos 2000: a transição inconclusa da ditadura civil-militar conferiu uma interpretação mitigada às políticas municipais de segurança e residual, consequentemente, ao papel das Guardas Municipais, cingindo à zeladoria do patrimônio físico e material dos próprios públicos municipais. Foi a fase das Guardas Municipais como cuidadoras de coisas;
De 2001 a 2007: em 2000, durante a gestão Fernando Henrique Cardoso (FHC), foi lançado o I Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) e, posteriormente, em 2003, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o II PNSP, que culminou com uma maior valorização dos Municípios e das Guardas Municipais no Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), através da Lei nº 10.746/2003, sem prejuízo de outras normas afins, como a regulação do uso de arma de fogo pela Lei n.º 10.826/2003 (“Estatuto do Desarmamento”);
De 2007 a 2012: vivenciou-se o auge do financiamento das políticas municipais de segurança com o reconhecimento do papel protagonista desse ente federativo na governança integrada das políticas públicas de segurança desde o poder local, a partir do advento do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI)[1], fundado nas Leis nos530/2007 e 11.707/2008, o que fortaleceu a atuação das Guardas Municipais como cuidadoras das pessoas que afluem aos espaços públicos das cidades;
De 2014 a 2016: em paralelo com o fim do PRONASCI e a falta de priorização da segurança pública municipal, foi aprovado no Congresso Nacional a mais importante norma jurídica sobre o tema até então: a Lei Federal n.º 13.022/2014, que entrou em vigência em agosto de 2016, regulamentando o §8º do art. 144 da Constituição Federal com a exemplificação, no art. 5º dessa Lei, de 18 (dezoito) atribuições das Guardas Municipais;
Desde 2018: a Lei Federal n.º 13.675/2018 formalizou a constituição do SUSP, consagrando as Guardas Municipais (e os Municípios) como órgãos de segurança pública integrantes do SUSP e consolidando a transição paradigmática, ao nível normativo, pelo menos, das Guardas Municipais como instituição de força, verdadeira polícia municipal responsável por preservar o maior patrimônio público municipal: as pessoas que acorrem aos equipamentos e serviços públicos municipais.
Por outro lado, com base nessa breve recuperação histórica, é forçoso concluir que a decisão do STF aqui comentada, longe de configurar uma novidade no mundo da vida, ou mesmo uma interpretação normativa inovadora sobre o papel das Guardas Municipais nesse campo, contribui para clarificar e consolidar, na ordem jurídica nacional, as mudanças político-jurídicas havidas na última década.
Nesse sentido, como bem asseverou o mais novo ministro da Corte, Cristiano Zanin, em seu voto: “Não há nenhuma dúvida judicial ou legislativa da presença efetiva das guardas municipais no sistema de segurança pública do país”. Com efeito, afigura-se relevante apontar algumas das consequências práticas desse julgado, eventuais lacunas e desafios ainda existentes, que deverão merecer o correto endereçamento doravante:
A decisão do STF no âmbito da ADPF 995 está para a Lei Federal n.º 13.675/2018 (“Lei do SUSP”) como aquela adotada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5780 para a Lei Federal n.º 13.022/2014, ou seja, as Guardas Municipais são integrantes do SUSP, no limite e abrangência das suas competências constitucionais e atribuições legais, de forma cooperativa, sistêmica e harmônica com as demais polícias, já que constitucional o seu Estatuto (ADI 5780), inclusive em relação à fiscalização de trânsito;
Logo, as Guardas Municipais exercem atividades típicas de segurança pública, sendo legítima, constitucional e legalmente, o seu reconhecimento como polícia municipal, com poder de polícia estrito, de natureza administrativa, diverso do das Polícias Militares, posto que fundamentado no art. 78 do Código Tributário Nacional, editado na década de sessenta do século passado;
Como tal, devem ser estendidos à essa categoria todos os direitos inerentes a uma instituição policial, a exemplo da aposentadoria especial, ainda pendente de regulamentação;
De igual modo, como qualquer instituição de força, não existe polícia sem controle, daí porque as instâncias de controle interno (Corregedoria) e externo (Ouvidoria), previstas no Estatuto Geral, precisam ser estruturadas com rigor técnico, emprego de tecnologia e inteligência, zelando pelo uso diferenciado da força, de acordo com as melhores práticas nacionais e internacionais, sem prejuízo do indeclinável papel de controle social externo pelo Ministério Público;
A ausência de parâmetros mais claros de registro, monitoramento e avaliação da atuação das Guardas Municipais, acompanhada da reprodução de práticas profissionais tradicionais advindas, em particular, das Polícias Militares, demanda novos padrões de governança e gestão do conhecimento, não somente limitados aos criminais, mas também abarcando as violências nas escolas, atendimentos a grupos vulnerabilizados, promovendo mediação de conflitos e práticas restaurativas, colaborando com a prevenção social e situacional, entre outros.
É indubitável, portanto, que, com essa decisão, mais uma vez, o STF chancelou um consenso mínimo em torno da compreensão das Guardas Municipais como instituição fundamental no campo da segurança pública municipal cidadã e do SUSP.
[1] Em 2023, foi lançada o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI II) pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
EDUARDO PAZINATO - Advogado e Professor Universitário. Mestre em Direito (UFSC) e Doutor em Políticas Públicas (UFRGS). Associado Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Ex-Secretário de Segurança e Cidadania de Canoas/RS e ex-Conselheiro Nacional de Segurança Pública.
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