ARTICULISTAS PROTAGONISMO
PODER JUDICIÁRIO E SEGURANÇA PÚBLICA:
INDICATIVOS DE UM MAIOR PROTAGONISMO JUDICIAL.
20/10/2023 14h21
Por: Carlos Nascimento Fonte: Edição Nº 200 - fontesegura.forumseguranca.org.br

O maior protagonismo judicial em matéria de segurança pública passa por uma atuação garantista no âmbito do processo penal, assegurando a lisura do processo desde a produção probatória até a execução da pena, e contribuindo com decisões paradigmáticas para o aperfeiçoamento institucional.

A relação do Poder Judiciário com a segurança pública é complexa, cabendo a ele tanto as funções jurisdicionais tradicionais de processamento e julgamento das infrações penais, quanto a solução de conflitos entre diferentes órgãos, a interpretação de mudanças legais conforme a Constituição, ou a indução de caminhos para o enfrentamento de questões que ferem os direitos e garantias constitucionalmente assegurados.

Nas ações penais, em que o titular é o Ministério Público, a condenação dos autores de delitos de ação pública e a absolvição daqueles para os quais não há fundamento legal para uma condenação criminal, são situações nas quais o Judiciário cumpre o seu papel quando atua de forma isenta, aplicando a lei e os princípios penais, em prazo razoável, indicando à sociedade que a resposta penal está sendo dada, nos limites de sua atribuição.

Fato é que, desde a redemocratização, e por motivos que não se circunscrevem à realidade brasileira, temos assistido ao aumento do protagonismo do Poder Judiciário, naquilo que tem sido chamado de judicialização da vida social. Ou seja, cada vez mais, o Poder Judiciário é chamado a dirimir conflitos nas mais diversas esferas da vida em sociedade e na relação entre os demais Poderes. Concomitantemente, e talvez por consequência desse protagonismo ampliado em sociedades constitucionalizadas, muitos magistrados têm assumido uma postura mais ativa quando são demandados a assegurar que os direitos declarados na Constituição e nas normas infraconstitucionais sejam efetivados.

Neste segundo sentido, tem crescido no Brasil a atuação do Judiciário na tomada de decisões que afetam diretamente a gestão da segurança pública, por provocação dos atores institucionais legitimados para o ingresso de demandas nos tribunais superiores, como partidos políticos e associações de classe. Essa atuação tem contado também com a indução do Conselho Nacional de Justiça, quando identifica falhas e atua através de recomendações ou correições.

Desde que foi criado, em 2003, pela Emenda Constitucional 45, o CNJ assumiu o papel de órgão de planejamento, correição e indução de políticas judiciárias, nos mais diversos âmbitos, buscando estabelecer padrões mais definidos de atuação do Poder Judiciário diante de situações de descumprimento de normas e princípios fundamentais. Um dos âmbitos que primeiro passou a receber a atenção do órgão foi a execução penal, pela situação de descalabro do sistema penitenciário, com superlotação, domínio de facções e violência institucional, que acabou levando o STF a declarar a situação carcerária no Brasil como um “estado de coisas inconstitucional”, no julgamento da ADPF 347, em 2015, tendo o ministro Luís Roberto Barroso como relator, pela violação massiva de direitos fundamentais da população prisional por omissão do poder público. Também implementou os mutirões carcerários, para a liberação de presos com penas já cumpridas, elaborou a recomendação nº 62 e suas atualizações, para minorar os efeitos da pandemia de covid-19 no sistema, e ampliou as estruturas necessárias para a implementação de penas e medidas alternativas à prisão e medidas cautelares diversas da prisão preventiva.

A atuação do CNJ estendeu-se, recentemente, à instituição de uma Política Antimanicomial do Poder Judiciário, por meio da Resolução nº 487/2023, que objetiva resguardar os direitos das pessoas em conflito com a lei que apresentem transtornos mentais ou qualquer forma de deficiência psicossocial.[1] A Resolução estabelece diretrizes a atender para aqueles que estejam sob a custódia do Estado, no cumprimento de penas ou de medidas de segurança, ou que sejam investigados ou acusados. Dentre as orientações contidas nesse regramento está a de que “nenhuma pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que em enfermaria, ou seja submetida à internação em instituições com características asilares”. O protagonismo do CNJ, no caso, ao adotar uma política atrelada às Convenções Internacionais, vedando a internação em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, acarretou, inclusive, a reação de Deputados integrantes da denominada “Bancada da Bala” no Congresso Nacional, que buscam, via Projeto de Decreto Legislativo, sustar a Resolução.

Mas não ficou apenas no âmbito do enfrentamento das mazelas do encarceramento a atuação do CNJ e dos tribunais superiores nos últimos anos. Também houve ações voltadas ao enfrentamento da violência policial. Foi por iniciativa do presidente do STF e do CNJ em 2015, ministro Ricardo Lewandowski, que foram firmados os acordos de cooperação com os tribunais de justiça dos estados para a implementação das audiências de custódia, dando efetividade a tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, visando tanto a adoção de medidas cautelares diversas da prisão preventiva sempre que possível, quanto a averiguação dos casos de violência policial praticada de forma indevida no momento da prisão.

Visando à redução da absurda letalidade policial em regiões de periferia, a partir da liminar do ministro Edson Fachin no julgamento da ADPF 63, que estabeleceu restrições à realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de covid-19, em 2021, o STF acabou por obrigar o Executivo daquele estado a apresentar plano de redução da letalidade policial e controle da violação de direitos humanos pelas forças de segurança. Em 2022, o ministro Rogério Schietti foi o relator do recurso em habeas corpus que reconheceu que a alegação genérica de “atitude suspeita” é insuficiente para a licitude da busca pessoal, devendo a busca pessoal ou veicular sem mandado judicial estar fundamentada em elementos que evidenciem a urgência para executar a diligência. Neste caso, informações anônimas ou intuições subjetivas, pautadas no “tirocínio policial”, não satisfazem a exigência legal, resultando na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida. A decisão do ministro Schietti, referendada pela 6ª Turma do STJ de forma unânime, aponta que:

“Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos – diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade” (RHC 158.580-BA, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 19/04/2022, DJe 25/04/2022).

Todos esses exemplos demonstram que, sim, o Poder Judiciário tem atribuições no âmbito da segurança pública, reconhecida como um direito social, tal como disposto no art. 6º da Constituição Federal. Atribuições estas que muitas vezes se contrapõem a padrões tradicionais de tomada de decisão sobre prisões preventivas e condenações criminais, baseados no populismo punitivo, e fundamentadas em chavões genéricos sobre a gravidade do delito praticado e a necessidade de manutenção da ordem pública e da paz social, que ainda aparecem em grande parte das decisões judiciais no âmbito penal e em nada alteram a realidade social da criminalidade urbana violenta.

O maior protagonismo judicial em matéria de segurança pública, como se vê, passa por uma atuação garantista no âmbito do processo penal, assegurando a lisura do processo desde a produção probatória até a execução da pena, e contribuindo com decisões paradigmáticas para o aperfeiçoamento institucional. Mas, também, pela interpretação de leis aprovadas e que geram o questionamento de sua constitucionalidade, e cuja interpretação conforme à Constituição pode contribuir para reformas profundas nas instituições de segurança pública, e mudanças nas relações cotidianas entre os órgãos de segurança e os cidadãos.

Nessa linha, ficamos agora na expectativa da implementação da figura do juiz de garantias, seu possível impacto sobre os procedimentos preliminares de produção probatória no processo penal e da consolidação do reconhecimento do papel das Guardas Municipais como atores do sistema de segurança pública, ambas questões decididas recentemente pelo pleno do STF.

No caso do juiz de garantias, o recente julgamento das quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade pelo STF acabou por definir a legalidade da figura, estabelecendo os contornos definitivos de sua implementação, que poderá trazer novas possibilidades para a fase de investigação criminal anterior à denúncia.

Quanto às guardas municipais, o julgamento também recente da ADPF 995 firmou o entendimento de que elas integram o sistema de segurança pública, em harmonia com a Lei 13.022/2014 (que estabeleceu o Estatuto Geral das Guardas Municipais) e a Lei 13.675/2018 (que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública).

Como se vê, questões cruciais para a arquitetura e o funcionamento das instituições de segurança pública e justiça criminal têm sido pauta constante dos tribunais superiores na última década, tendo como parâmetro a adequação das práticas institucionais e das reformas legais aos preceitos constitucionais. Podemos concordar ou não com as decisões que vêm sendo tomadas, mas o fato é que o Poder Judiciário veio para ficar como arena de definição das grandes questões que envolvem a segurança pública.

[1] https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4960

RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO - Sociólogo, coordenador do Observatório de Segurança Pública da Escola de Direito da PUCRS.

FERNANDA BESTETTI DE VASCONCELLOS - Socióloga, professora do Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da UFRGS.

LUIZ ANTONIO ALVES CAPRA - Desembargador do TJRS, Doutorando em Ciências Sociais na PUCRS.

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