A forma como vem operando o sistema prisional brasileiro tem permitido a criação e manutenção de um controle social racializado, reproduzindo padrões discriminatórios e naturalizando a desigualdade racial.
Analisando os dados referentes ao sistema prisional brasileiro do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 2023[1], em números absolutos, estamos falando de 832.295 pessoas com a sua liberdade cerceada e sob a tutela do Estado.
Temos ainda uma ausência importante de vagas, que enfatiza a falência do sistema. A superlotação já foi pauta do STF enquanto “estado de coisas inconstitucional”, julgada cautelarmente na ADPF 347, em 2015. Quase uma década depois, ainda há 230.578 pessoas a mais do que o sistema comporta – ou seja, opera quase com 50% além do que consegue suprir, tendo 1,4 presos por vaga.
O sistema prisional brasileiro escancara o racismo estrutural. Se entre 2005 e 2022 houve crescimento de 215% da população branca encarcerada, houve crescimento de 381,3% da população negra. Em 2005, 58,4% do total da população prisional era negra; em 2022, esse percentual foi de 68,2%, o maior da série histórica disponível. Em outras palavras, o sistema penitenciário deixa evidente o racismo brasileiro. A seletividade penal tem cor.
No que diz respeito à faixa etária, a maior parte da população encarcerada continua sendo de jovens entre 18 e 29 anos, compondo 43% do total. No ano de 2021, esse percentual era de 46,3%; a ligeira queda, contudo, não muda o cenário geral. O perfil da população encarcerada é o mesmo da população que mais morre: jovens e negros.
No que diz respeito ao sexo/gênero, o crescimento no total de pessoas privadas de liberdade se deu no sexo masculino, passando de 775.253 pessoas em 2021 para 786.907 pessoas em 2022. Entre 2020 e 2021, havíamos verificado um crescimento da população feminina custodiada, o que parece ter se estabilizado em 2022. Entretanto, embora o número de mulheres presas pareça em um cenário de estabilidade, há que se considerar que o cárcere se amplia para as dinâmicas familiares. Nesse sentido, temos equivalente ao número de homens presos, o número equivalente de mulheres cis e trans (negras) que têm suas vidas igualmente aprisionadas na condição de mães, companheiras, namoradas, filhas que assumem a liderança familiar, tanto para as visitas, para a manutenção da rotina dentro e fora do cárcere, assim como para monitorar os andamentos jurídicos do cumprimento de pena[2].
Quanto aos presos em laborterapia, em 2022, 21,7% realizavam trabalho externo. A novidade é o aumento do percentual da população presa que realiza atividade em laborterapia, passando de 14,5% em 2021 para 18,8% em 2022. Nacionalmente, nos estabelecimentos com oferecimento de pelo menos uma vaga de laborterapia, também houve crescimento, passando de 77,1% de estabelecimentos em 2021 para 86,8% em 2022.
A maior parte das pessoas em laborterapia está em trabalhos para apoio ao próprio estabelecimento prisional (48%), seguida de trabalhos em parceria com a iniciativa privada (19,8%), obtida por meios próprios e/ou sem intervenção do sistema prisional (19,3%). Por fim, 11,8% das vagas de laborterapia estão em parceria com órgãos públicos. Em relação à remuneração mensal, a grande maioria das pessoas não recebe nenhum tipo de remuneração (59.529 das pessoas privadas de liberdade).
O que isso nos informa sobre a política nacional de trabalho no âmbito prisional[3]? Em uma leitura que considera a herança da escravidão[4], é evidente a precarização das atividades laborativas exercidas por pessoas no sistema prisional. Isso porque a exploração da mão-de-obra disponível prioritariamente alimenta o próprio estabelecimento prisional e, além disso, não percebe qualquer remuneração. Ou seja, o que vem se consolidando como regra é a naturalização da subalternização racial.
Funcionando do modo como esse sistema está estabelecido, a rede intricada de relações que por ele passa invisibiliza os conflitos raciais derivados do seu próprio funcionamento. Naturaliza as desigualdades, legitimando-as pela sua própria operação.
[1] Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 23/08/2023.
[2] WERNECK, Jurema. Cartas para quem? In PIRES, T. FREITAS, F (Org.). Vozes do cárcere: ecos da resistência política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018. Disponível em https://www.jur.puc-rio.br/wp-content/uploads/2019/02/Vozes_do_carece.pdf. Acesso em 13/07/2023.
[3] A PNAT (Política Nacional de Trabalho no Âmbito Prisional – Decreto No 9.450/2018. Inteiro teor: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9450.htm Acesso em 13/07/2023.
[4] Souza, Jessé. A elite do atraso. Da escravidão à lava jato. São Paulo, Leya, 2017.
JULIANA BRANDÃO* - Doutora em Direito Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
AMANDA LAGRECA - Mestranda em Administração Pública e Governo na FGV e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Edição Nº 198 - fontesegura.forumseguranca.org.br