O Brasil é considerado um dos maiores protagonistas na cadeia transnacional de valor de cocaína. Inestimáveis quantidades de pasta base e de cloridrato da droga são importadas dos países produtores – Colômbia, Peru, Bolívia e Venezuela – ou do Paraguai, país de trânsito. As regiões de fronteira com os produtores são, assim, espaços estratégicos e disputados por grupos criminais brasileiros que buscam importar cocaína. Enquanto a pasta base é consumida no mercado interno brasileiro em diferentes formas e misturas, a maior parte do cloridrato, com alto grau de pureza e sem processamentos químicos no decorrer do transporte, é exportado para outros continentes, sobretudo para a Europa, por vias marítimas e aéreas. Ao longo dos anos, o Brasil tem se destacado tanto no consumo quanto na distribuição nacional e internacional da droga, sendo um dos grandes importadores e exportadores mundiais.
Se o Brasil não produz cocaína, por que se afigura como central no tráfico que tem como destino outros países e continentes? O vasto sistema logístico brasileiro integrado às infraestruturas marítima, aérea, rodoviária e ferroviária confere vantagem sobre os países vizinhos. O Brasil tornou-se, portanto, um país de trânsito do cloridrato, um hub logístico de múltiplas rotas internacionais do tráfico. Outro aspecto é que tais infraestruturas não operam sozinhas, elas precisam de pessoas. É necessário planejamento logístico para funcionarem, elaborados e operados por redes de pessoas e informações que dão “vida” àquilo que é material.
Durante a última década, as grandes facções criminais brasileiras progressivamente passaram a explorar a circulação de mercadorias legais que atravessam as infraestruturas (como portos, por exemplo), visando transportar e camuflar a cocaína. Sendo assim, o Brasil também apresenta uma infraestrutura criminal sofisticada e especializada nesse comércio transnacional ilegal, com expertise, experiência e redes de proteção que o sustentam. O que envolve também o conhecimento de barreiras, sistemas de vigilância, tecnologias de monitoramento, a fim de evitar os riscos de apreensão da droga.
A importância do Porto de Santos é grandiosa em vários aspectos, não apenas para os mercados ilegais, como para quase 30% da corrente comercial brasileira. Ele é considerado o maior do Hemisfério Sul em movimentação de cargas, e segue batendo recordes anuais. São mais de 160 milhões de toneladas de cargas movimentadas anualmente e uma média de 9 mil contêineres circulando por dia. Se, por um lado, toda essa movimentação de mercadorias dificulta o trabalho das forças de segurança, que tentam controlar os fluxos ilícitos, por outro lado, ela é atraente para os grupos criminais que buscam embarcar drogas em navios.
Nesse sentido, o Porto de Santos serve como um nó central na cadeia do cloridrato de cocaína através do Atlântico, em direção ao continente europeu, africano e asiático. Além do enorme fluxo de cargas, a própria posição geográfica do porto é estratégica, com proximidade e integração logística a São Paulo e a outras cidades, estados e países. É um porto exportador de commodities, com muito fluxo para a Europa – grande mercado comprador e consumidor da cocaína. Também possui uma logística estabelecida, na qual redes criminais e de proteção buscaram progressivamente se integrar, ao longo dos últimos 20 anos. O Primeiro Comando da Capital (PCC), maior facção do país, com recém-completados 30 anos de existência, já possui atuação na região da Baixada Santista desde o início dos anos 2000.
A expansão do PCC, em escala nacional e internacional, pode ser compreendida por etapas. Nos anos 1990, após surgir como um grupo de encarcerados, a facção cresceu dentro das prisões frente à opressão carcerária (vide massacre do Carandiru). Esse tempo ficou conhecido como a “época das guerras”, travadas contra o sistema prisional e grupos inimigos, com intensos conflitos relacionados ao tráfico de cocaína no varejo.
Com o aumento da população carcerária, durante a década de 2000, o PCC batizou cada vez mais presos, seguindo a ética e disciplina do Comando (com os sentidos “paz”, “justiça”, “liberdade” e “igualdade”). A facção também mostrou suas ações dentro e fora das prisões (como a megarrebelião de 2006). Outro ponto notável foi a queda dos homicídios nas periferias, pois o sentido “igualdade” proibiu que se matasse sem o aval do Comando, sem que todas as partes envolvidas nos conflitos sejam ouvidas e uma deliberação de resolução seja definida. Correlato a isso, o comércio de varejo de drogas nas periferias do estado de São Paulo se tornou monopólio do PCC.
A partir da década de 2010, o Comando espalha sua influência e disciplina para outros estados brasileiros. Sublinho que essa expansão se dá, em especial, para pontos nodais de atravessamento de mercadorias ilícitas no atacado: fronteiras nacionais e dos interiores do país, e portos e aeroportos. A exemplo disso, o PCC passou a ter maior hegemonia no Porto de Santos a partir de 2014. Por sua vez, o ano de 2016 foi marcante pela morte de Jorge Rafaat na fronteira do Brasil com o Paraguai e pelo racha do PCC e do CV, deflagrando conflitos em prisões no Norte e Nordeste. Nesse período se inicia uma mudança nas diretrizes de ação do grupo, que passa a focar no tráfico internacional de cocaína. Desde então, o PCC se capilarizou e está presente em outros países e continentes, com diversas alianças mercantis.
Após 2019, houve uma diversificação das rotas do cloridrato, quando outros portos ganharam destaque, como o de Paranaguá e, mais recentemente, portos do Norte e Nordeste, como Belém e Salvador. Ainda que os dados oficiais de apreensão de cocaína representem pequena fração do universo de cocaína circulante nos portos e se refiram mais aos trabalhos das forças de segurança, eles são significantes como panorama geral (a exemplo dos dados sistematizados em Atlantic Connections: the PCC and the Brazil–West Africa Cocaine Trade, 2023, p. 14, que apontam para o fenômeno da diversificação das rotas marítimas).
Os dados oficiais cruzados e analisados com outros dados de entrevistas, por exemplo, apontam para a diversificação das rotas de cocaína pelas grandes facções brasileiras, em especial o PCC e o CV. Como estratégia de expansão de mercados e para evitar fiscalizações que vêm aumentando nos portos e rotas mais “conhecidas”, as facções têm buscado outros portos para escoar a droga. Isso, porém, demanda tempo, negociações e, evidentemente, gera conflitos. As regiões amazônicas, por exemplo, têm sido palco desse cenário violento, com evidências de atuação das facções do Sudeste. No entanto, a expansão para territórios estratégicos se dá de maneira distinta entre as duas facções, gerando efeitos diferentes. Enquanto o PCC tende a fazer alianças locais, o CV preconiza um domínio territorial
Ter maior conhecimento das dinâmicas faccionais em territórios específicos é fundamental para pensar possíveis ações para a área de Segurança Pública. Mais prisão e violência direcionadas aos baixos operadores do mercado de drogas é um exemplo do que não tem funcionado – pelo contrário, tem potencializado o que a priori pretende-se controlar. É preciso ir além: fortalecer os sistemas formais de justiça, com investigação séria de homicídios, por exemplo; enfrentar o problema dos presídios brasileiros, que hoje são catalizadores do crime; e buscar tentativas de regulação dos mercados ilegais. Operações devem ser feitas com base em inteligência policial, não sendo somente opressivas e vingativas, que acabam por atingir majoritariamente as populações pobres e pretas do país.
ISABELA VIANNA PINHO - Doutoranda em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos.
Edição Nº 202 - fontesegura.forumseguranca.org.br