O tema da segurança, desde a redemocratização, sempre foi um dos que mais pesaram nas eleições brasileiras. Todo candidato a cargo executivo foi cobrado sobre o que faria, se eleito, para combater o principal problema da época. No final do século XX e início do XXI, pelo menos no Rio de Janeiro e em São Paulo, uma das principais pautas era apresentar propostas sobre como debelar a “onda” de sequestros, um crime que atingia uma parcela muito pequena da população.
Em cima disso, a imaginação da maioria dos candidatos e seus assessores voava livremente. Propostas de todos os tipos eram inculcadas nos eleitores, algumas das quais bem estapafúrdias. Aliás, uma delas dizia respeito a diminuir os impostos sobre carros blindados. Ou seja, ia atingir menos de 0,1% da população, numa época que cada vez mais criminosos entravam para o ramo, a maioria completamente despreparada para esse tipo de crime. Na verdade, estavam sequestrando até os donos de padaria e muitos locais de cativeiro eram totalmente improvisados. Guardavam as vítimas “debaixo da cama da tia”, como diziam alguns membros da delegacia antissequestro de SP. Mas uma proposta absurda como essa, que ajudaria muito mais as empresas de blindagem do que as possíveis vítimas, revela muito sobre a relação política/polícia corrente ainda hoje no Brasil.
Além das constantes promessas de aumento salarial para os policiais, as mais diversas correntes políticas, tanto de direita como de esquerda, só se lembram da segurança pública e, portanto, da polícia, nos períodos eleitorais ou em momentos de crise. E, como decorrência disso, dificilmente os planos apresentados aos eleitores têm coerência ou relação com a realidade. São baseados mais nas pesquisas de opinião pública do que na realidade factual. Eles não estão baseados nos problemas reais, mas sim na percepção. Portanto ninguém busca verificar quais os principais problemas nem o “tamanho da encrenca”; o foco são os dados produzidos pelas instituições de pesquisa eleitoral.
Portanto, chegando ao poder, o político eleito pode até tentar implementar uma determinada política de segurança, mas ela não está necessariamente vinculada à realidade, àquilo que realmente prejudica a população. É claro que qualquer um eleito pelo povo tem de dar uma resposta a seu eleitorado. Se fala em diminuir os impostos sobre a blindagem deve, efetivamente, trabalhar para isso. O problema é não enfrentar realmente o problema por absoluto desconhecimento do mesmo.
O segundo problema após as eleições é que aqueles que devem trabalhar para melhorar a segurança vão tocando as coisas de forma impulsiva, respondendo mais às manchetes e aos costumes do que à realidade. As polícias porque têm seu próprio achômetro, dependendo do grupo que as comanda. Já os governantes porque não têm ideia dos problemas reais; raramente têm assessoria qualificada, e tocam de acordo com a música. Principalmente a dos meios de comunicação, que identificam os problemas também de forma pontual, uma manchete puxando a outra.
Foi na área de inteligência de estado que se criou o costume de trabalhar em cima da “Lista de Compras”. Trata-se da noção de que existem muitos fatos, situações, pessoas, instituições, sobre as quais seria bom ter informações corretas, mas o aparelho de inteligência nunca é grande o suficiente para cobrir toda a realidade. Mesmo nos estados totalitários, nos quais a polícia política é muito grande, nunca foi possível acompanhar tudo, portanto tem de existir uma seleção dos alvos que devem ser acompanhados e/ou analisados.
Para remediar isso é que existe a “Lista de Compras”, que identifica os alvos prioritários para os respectivos governos. Onde isso não ocorre acaba-se numa situação como a do Brasil onde, alguns anos atrás, a ABIN tinha um painel, cognominado Mosaico, que acompanhava as mudanças diárias em cerca de 700 coisas diferentes. E para acompanhar essas mudanças era empregado um efetivo absurdo, deixando pouca gente para as outras tarefas, muitas vezes mais importantes do que saber se a colheita da região sudeste foi maior ou menor que no ano passado. Afinal é para isso que existe o Ministério da Agricultura.
Mas a que se deve esse desperdício? À falta de uma lista de compras, uma relação, feita pelos governantes de quais são suas prioridades. O que eles precisam saber para governar melhor. Porém a lista nunca existiu de fato no país, muitas vezes tornando quase que tudo produzido pela Abin inútil e praticamente nem mesmo consultado.
Em segurança ocorre o mesmo. É evidente que qualquer tipo de crime tem de ser combatido pelas polícias, assim determina a lei. Mas ela é um parâmetro geral; quem deve definir as prioridades é o governo, evidentemente que com auxílio do Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Mas quem bate o martelo tem de ser mesmo o Executivo. Um governador, ou seu secretário de segurança, deve decidir se a prioridade é combater o tráfico ou o crime contra o patrimônio. Se escolher a segunda opção, que crimes específicos. Por exemplo, a prioridade é o roubo e furto de celulares no centro paulista ou o roubo a banco? Onde a polícia deve concentrar seus esforços? Claro que para isso tem de ouvir a opinião dos cidadãos em geral, que sabem o que mais os incomoda, e também daqueles que trabalham na repressão ao crime, e têm ideia mais concreta do que pode ou não ser feito. Na verdade, mesmo estabelecer prioridades “meia boca” é melhor do que não ter nenhuma.
Como já escrevi outras vezes, polícia é cobertor curto, se cobre a cabeça descobrem-se os pés. Nunca dá para fazer de tudo. Se não existirem prioridades, as instituições, ou pedaços delas, farão o mais fácil ou simplesmente repetirão o que sempre foi feito. E isso pode implicar distorções como perder mais tempo num inquérito sobre um cachorro que incomoda os vizinhos com seus latidos do que com uma série de furtos de celulares. O que é bom para os incomodados com os latidos, mas ruim para a população vítima dos furtos.
GUARACY MINGARDI - Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Edição Nº 203 - fontesegura.forumseguranca.org.br