Exatamente no dia em que me dedicava à escrita desta coluna, li a frase “Falha a fala, fala a bala”, cunhada por Paulo Lins, autor da obra Cidade de Deus. Ocorreu-me então uma adaptação relacionada ao tema, algo mais técnica, mais pericial, digamos: Falha o projeto, fala o projétil!
O projeto aqui é o projeto de uma sociedade justa, menos violenta, portanto mais segura, com um estado presente que proporcione a paz que os cidadãos merecem, mas quando esse projeto falha, o projétil toma a palavra, e com que força, com que alcance: dados do Monitor de Violência, parceria entre o G1, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), apontaram no estado do Rio de Janeiro cerca de 1.800 mortes apenas no primeiro semestre deste ano, certamente mais de 80% delas com emprego de armas de fogo.
A madrugada do dia 5 de outubro estava apenas começando, mas a Cidade Maravilhosa, cujo esplendor natural nunca se esgota, reservava, em nítido contraste com o belo, momentos de terror com o desenrolar de mais uma chacina, desta vez numa área nobre da cidade, na Praia da Barra da Tijuca, entre os postos 3 e 4.
Quatro médicos reunidos na cidade para um Congresso Internacional de Cirurgia Minimamente Invasiva do Pé e Tornozelo estavam em um quiosque de praia em frente ao Hotel Windsor, no qual estavam hospedados, quando um carro branco parou e dele desceram três homens armados com pistolas. Uma câmera de segurança que captou a cena marcava 0h59min. Os homens armados apenas se aproximaram e fizeram inúmeros disparos contra o grupo, num ato de verdadeira execução sumária.
Das quatro vítimas, duas morreram ainda no local: Marcos de Andrade Corsato, 62 anos, e Perseu Ribeiro Almeida, 33 anos. Diego Ralf Bomfim, 35 anos, irmão da deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP), foi socorrido, mas chegou em óbito a um hospital, e Daniel Sonnewend Proença, 32 anos, mesmo atingido por 14 disparos de arma de fogo, sobreviveu e se encontra estável e sem risco elevado de morte.
Nesse tipo de ocorrência, que envolve o emprego de armas de fogo, a perícia de local, a perícia balística e a necrópsia são sempre preponderantes, mas outros exames também serão realizados.
Vamos analisar as informações divulgadas até agora pela mídia, relativas aos vestígios, e entender como eles podem contribuir para o esclarecimento dos fatos:
A perícia de local teria recolhido 33 estojos deflagrados, o que sugere que esse seja, a princípio, o número mínimo de disparos efetuados com as armas empregadas;
Os cartuchos encontrados são compatíveis com aqueles empregados em pistolas de calibre 9 mm;
O vídeo gravado por uma das câmeras do quiosque indica o horário de 0:59:20 como o momento em que um carro branco estaciona e de onde descem 3 homens armados e o horário de 0:59:55 quando o carro desaparece do alcance da câmera. Portanto, em 35 segundos a ação se desenrola. Esse vídeo e outras possíveis imagens de outras câmeras poderão ajudar a definir toda a dinâmica e certamente serão objeto de perícia;
Dados dos exames cadavéricos mostraram que Diego foi atingido por 8 projéteis, dos quais dois foram nas costas (escápula direita), um no ombro posterior direito, um no punho direito, um na coxa direita, um na lateral direita, um no peito direito e um no trapézio direito. Perseu foi atingido por 5 projéteis. Dois disparos foram de raspão e atingiram a mão esquerda e o braço direito, enquanto, entre os outros três, um atingiu a mão direita, um a escápula direita (com saída no lado direito do peito), e o outro a região lombar (lado direito). Marcos foi atingido por 6 projéteis, dois na cabeça, um na nuca, um costas, um no braço esquerdo e um na barriga;
Exames em dispositivos (celulares) das vítimas podem de alguma forma contribuir com a investigação e certamente também serão realizados;
As perícias balísticas poderão ser realizadas mesmo antes da apreensão de possíveis armas suspeitas de terem sido utilizadas. Os estojos deflagrados serão descritos, e, caso possuam números gravados, poderão ser rastreados. Os projéteis coletados no local e outros extraídos das vítimas também podem ser descritos, fotografados e lançados em bancos de dados balísticos, visando definir se as armas empregadas já constam no sistema desse banco, indicando que já teriam sido empregadas em outros crimes.
A principal linha de investigação divulgada pela Polícia Civil aponta que o crime foi praticado por traficantes que queriam matar um miliciano na região em uma clara disputa de poder. Perseu, uma das vítimas, teria por engano sido confundido com o miliciano alvo dos traficantes. No mesmo dia da chacina, quatro corpos foram encontrados baleados em dois veículos. Eram os suspeitos de ter participado da chacina, mortos por seus pares, após falharem e gerarem toda a repercussão que se estabeleceu.
Ainda há muito o que ser investigado, inclusive a possibilidade de crime político, já que um dos médicos mortos é irmão e cunhado de Deputados federais.
O que desejamos de verdade é que possamos ter menos violência e que o projétil se cale para que um projeto de paz tenha sucesso.
Edição Nº 204 - fontesegura.forumseguranca.org.br