Em um único dia, dois casos recentes chamaram a atenção da sociedade envolvendo instituições do governo federal e armas de fogo. No primeiro incidente, uma operação bem-sucedida da Polícia Federal resultou na apreensão de 47 fuzis e centenas de munições em uma residência de luxo na Barra da Tijuca, um bairro nobre do Rio de Janeiro. No segundo caso, durante uma inspeção no arsenal do quartel do Exército em Barueri, na grande São Paulo, os militares descobriram que 13 metralhadoras de calibre .50 e 8 de calibre 7.62 haviam desaparecido.
Esses são exemplos claros da importância da atuação do governo federal no combate ao tráfico ilícito de armas de fogo no país.
Em 10 de outubro, após investigações que apontavam para a existência de uma grande quantidade de armas de fogo em uma residência que seriam destinadas a facções criminosas no Rio de Janeiro, policiais federais realizaram uma operação de busca e apreenderam 47 fuzis, centenas de munições de calibre .556, além de maquinários e equipamentos para montagem e manutenção de armas de fogo. Três indivíduos foram detidos no local, e mandados de busca e apreensão foram emitidos para outros endereços relacionados aos envolvidos após a coleta de depoimentos e provas.
Em um dos endereços, em Belo Horizonte, onde supostamente existia uma fábrica de esquadrias de metal, os policiais encontraram mais maquinários que seriam utilizados na montagem de armas, além de cadernos de anotações e manuais de instruções. De acordo com os policiais envolvidos na operação, tudo indica que se tratava de um dos maiores traficantes de armas em atividade no país, que tinha diversas organizações criminosas no Rio de Janeiro como seus principais clientes.
Essa foi uma das maiores apreensões de armas de fogo nos últimos anos sem que um único tiro tenha sido disparado e sem colocar a população e os policiais em risco. Isso ocorreu apenas dois dias após uma grande operação no Rio de Janeiro, envolvendo cerca de mil policiais das polícias civil e militar em três comunidades controladas por criminosos, que resultou na apreensão de apenas um fuzil. Essa ação da Polícia Federal destacou uma eficácia do combate ao tráfico ilegal de armas de fogo por meio de investigações sólidas, sem a necessidade de confrontos espetaculares.
Enquanto isso, em um quartel do Exército em Barueri, na grande São Paulo, durante uma fiscalização interna, militares identificaram uma “discrepância no controle” que apontava para o desaparecimento de 21 armas, sendo 13 metralhadoras de calibre .50 e 8 de calibre 7.62. Segundo os militares, essas armas teriam sido furtadas, e não há pistas sobre o paradeiro delas ou os possíveis autores. Desde a descoberta, 480 militares estão proibidos de deixar o quartel enquanto as investigações prosseguem. De acordo com uma nota do Exército, essas armas eram consideradas “inservíveis” e foram recolhidas para manutenção, sem esclarecimentos sobre se seriam reparadas ou destruídas.
Embora esse não seja o primeiro caso de desvio de armas de quartéis militares, é o maior e o mais preocupante, devido à natureza das armas envolvidas. Em 2009, criminosos invadiram o 6º Batalhão de Infantaria Leve em Caçapava, São Paulo, e roubaram sete fuzis que estavam no posto de sentinela. Outros casos semelhantes ocorreram nos últimos anos. Segundo dados do Instituto Sou da Paz, de 2009 a 2020, um total de 67 armas foram desviadas de quartéis para criminosos, de acordo com informações do próprio Exército.
As metralhadoras de calibre .50 não são armas de fácil manuseio e transporte, e o desaparecimento de 13 delas torna a situação ainda mais preocupante. O modelo usado pelo Exército brasileiro é a M2 ou Browning, que tem um peso médio de 50 kg, o que torna improvável que uma única pessoa as tenha transportado sem ajuda ou o uso de veículos. Isso aumenta as suspeitas de envolvimento de militares no crime. Além disso, essas armas não são facilmente encontradas no mercado ilegal e têm um alto custo, chegando a cerca de R$ 150.000,00 cada. Há informações de que muitas delas são desviadas de forças militares de países vizinhos ao Brasil.
Essas armas começaram a ser apreendidas com criminosos a partir de meados da década passada, principalmente no Rio de Janeiro. Devido à sua eficácia contra veículos levemente blindados e aeronaves em baixa altitude, integrantes de facções criminosas entenderam que essas armas seriam ideais para atacar veículos blindados da polícia e helicópteros usados em operações policiais, principalmente no Rio de Janeiro. Essas armas têm um alcance significativo, podendo atingir alvos a até 700 metros quando disparadas contra aeronaves e a 2,8 km em tiros terrestres. Elas também têm sido utilizadas em ações do que foi chamado de “novo cangaço”, nas quais grupos criminosos atacam cidades para roubar agências bancárias, causando pânico na população.
No mesmo dia em que os policiais federais demonstravam o caminho a seguir no combate ao tráfico ilegal de armas de fogo no país, retirando dezenas de fuzis de circulação que poderiam ter caído nas mãos de organizações criminosas, os militares reforçaram mais uma vez a fragilidade do controle sobre seus arsenais, sinalizando a necessidade urgente de reformas. Esse cenário permitiu que armas de alto poder destrutivo acabassem nas mãos de criminosos.
Se o governo federal genuinamente deseja conter o acesso de armas a essas organizações, não é suficiente apenas fortalecer o controle sobre o comércio legítimo, a fim de evitar que armas legalmente adquiridas continuem a cair nas mãos de criminosos, como ocorreu nos últimos quatro anos. É essencial direcionar investimentos para a Polícia Federal, fortalecendo seu papel de liderança na luta contra o tráfico de armas no país, incluindo a melhoria de suas estruturas e investimento em recursos humanos.
A responsabilidade de evitar que armas alcancem as comunidades recai sobre o governo federal, e é imperativo que ele assuma esse papel de destaque. No entanto, é igualmente essencial repensar a forma como os militares gerenciam seus arsenais, a fim de evitar que esses esforços sejam infrutíferos. Caso contrário, estarão apenas “enxugando gelo”.
ROBERTO UCHÔA - Policial federal, doutorando em Democracia do Século XXI na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra/Portugal e Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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