POLÍCIA PENAL PRISÃO S.A.
Para especialistas, privatização de cadeias deve agravar encarceramento em massa
Estudiosos do sistema carcerário brasileiro dizem que a possibilidade de investimento privado nos presídios pode piorar ainda mais o cenário atual.
28/10/2023 11h01 Atualizada há 1 ano
Por: Carlos Nascimento Fonte: conjur.com.br

O vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), no exercício da Presidência da República, assinou em abril deste ano o Decreto 11.498, que alterou o Decreto 8.874, de 2016. O novo documento regulamenta as condições para a aprovação de investimentos em infraestrutura considerados prioritários pelo governo federal.
Entre áreas como saneamento básico e educação, a União escolheu o sistema prisional como uma de suas prioridades, inclusive autorizando a emissão de debêntures — títulos de dívida que geram um direito de crédito ao investidor — para permitir que empresas captem dinheiro no mercado de capitais para a construção de presídios.  Por serem incentivados pela União, esses títulos oferecem benefícios fiscais.

Especialistas acreditam que entrada do capital privado no sistema prisional vai piorar a já degradante situação das prisões.

A iniciativa de abrir o sistema prisional ao capital privado não é uma novidade no Brasil. Levantamento feito pelo jornal Gazeta do Povo aponta que existem atualmente 32 unidades geridas por empresas.

Os problemas desses presídios não são muito diferentes dos que se observam nas unidades que são geridas pelo poder público. Um exemplo: entre 2017 e 2019 ocorreram dois massacres no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), no Amazonas, à época dirigido pela empresa Umanizzare — ela deixou a gestão do complexo após o segundo massacre.

Dados do "Anuário Brasileiro de Segurança Pública" informam que o país teve um aumento de 257% em sua população carcerária desde 2000. 

No ano passado, o país chegou à marca de 832.295 presos, e a realidade em quase todas as prisões brasileiras é o estado de coisas inconstitucional, conforme foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347, de relatoria do ministro Marco Aurélio, hoje aposentado, em 2015.

Mau caminho
Estudiosos do sistema prisional brasileiro ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico não enxergam o investimento privado como uma solução para o drama das cadeias do país. Pelo contrário: eles acreditam que essa alternativa pode agravar ainda mais um cenário já caótico, com agravamento do problema do encarceramento em massa.

''É mais uma forma de transformar as pessoas privadas de liberdade em mercadorias. A gestão privada das penas fomenta o encarceramento em massa diante de contratos que preveem taxas mínimas de lotação das unidades prisionais'', afirma a defensora pública Mariana Borgheresi Duarte, coordenadora do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública de São Paulo.

Mariana defende que a experiência dos Estados Unidos deixou claro que a escolha do modelo privado não é viável economicamente. E ela lembra que aquele país já tem adotado políticas de reversão da privatização dos presídios.

"As debêntures incentivadas no setor prisional permitem, na prática, que o governo federal abra mão da arrecadação dos investidores privados por meio de isenções fiscais. Sob o pretexto da ressocialização das pessoas presas sob custodia do Estado, o governo federal vem incentivando o lucrativo mercado das prisões às custas dos corpos negros encarcerados e de suas próprias vidas."

Outro ponto problemático apontado por Mariana é que esse modelo faz com que o Estado delegue ao mercado seu poder de polícia, o que pode, segundo ela, piorar ainda mais o combate à tortura e às violações dos direitos humanos.

O advogado criminalista José Flávio Ferrari entende a questão de modo semelhante: ''O problema real, sentido na pele por aqueles privados de liberdade, começa na forma como esse lucro será obtido. Veremos empresas, em busca do lucro, reduzirem a qualidade e quantidade da alimentação, restringirem acesso ao mínimo existencial, inclusive com racionamento de água, além da redução dos atendimentos médicos, prática que já foi vista em outras PPPs". 

Ferrari explica que o modelo de remuneração por pessoa presa leva à necessidade de manter o maior número de pessoas encarceradas pelo maior tempo possível. ''E já temos conhecimento de estratégias administrativas que podem ser implementadas com esse fim, como avaliações psicológicas negativas e faltas disciplinares infundadas, que podem ser geridas pela administração."

A preocupação de Ferrari é compartilhada por Bruno Borragine, sócio do escritório Bialski Advogados. ''A tendência é de aumento do encarceramento de pessoas para manter a estrutura econômica do negócio em cada unidade prisional. Isso porque, no modelo de contratação privado, valores dos contratos são e serão balizados pelo número de detentos em cada unidade prisional. E, considerando que a máxima dos contratos privados é a visão de lucro, o modelo de privatização previsto no decreto estimula o encarceramento em massa."

Por sua vez, André Damiani, especialista em Direito Penal Econômico e sócio-fundador do Damiani Sociedade de Advogados, classifica a iniciativa como uma aberração sem qualquer vínculo com uma política criminal sustentável.

"Sob o pretexto de diminuir o custo do Estado e fornecer melhores condições de infraestrutura, ao fim e ao cabo, o setor privado busca mais uma oportunidade de negócio, que potencializará seus lucros às custas de um dever estatal. Na experiência brasileira, os presos em presídios privatizados custam aos cofres públicos o triplo daqueles dos presídios públicos", destaca ele. 

Por fim, o criminalista Diego Henrique engrossa o coro: "A lógica é bastante simples: quanto mais presos, maior o repasse do Estado; quanto menos custos, maior o lucro. Logo, a privatização buscará sempre o aumento do encarceramento, ao mesmo tempo em que busca reduzir gastos na administração das unidades. Esses são objetivos diametralmente opostos aos deveres do Estado na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos."