Logo no início da pandemia de COVID-19, uma parceria de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, da qual fiz parte, realizou um estudo mostrando que quase 70% dos policiais no Brasil tinham medo de serem contaminados e de morrerem da doença, bem como de levá-la para suas famílias. O estudo já indicava que metade dos policiais tinham um colega ou parente com suspeita de estarem com o vírus. Apenas 30% dos policiais se sentiam preparados para trabalhar durante a pandemia e nos estados do país pouco mais de 30% relatavam que haviam recebido os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para se protegerem da doença durante o turno de trabalho.
Ou seja, o estudo já apontava que os policiais não se sentiam preparados e não estavam recebendo nem treinamento muito menos equipamento de proteção adequados para lidar com a pandemia. Embora houvesse diferenças entre o preparo de instituições nos diferentes estados da federação, era nítida e clara a urgência de que medidas fossem tomadas para evitar uma alta vitimização de policiais no Brasil.
Embora tenha ganhado repercussão da imprensa e estivesse disponível ao público interessado, como é típico de nosso país, o estudo não despertou grande interesse dos gestores de segurança pública brasileiros e, ao que tudo indica, seus achados não sensibilizaram as secretarias de segurança dos estados - muito menos o Governo Federal - a adotar uma política nacional de prevenção a morte de policiais por COVID-19.
Os números recentes do Monitor da Violência, parceria entre o site G1, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP, mostram que a COVID-19 afetou bruscamente as instituições policiais. O número de policiais mortos pela doença é mais do que o dobro do que o de policiais que foram assassinados nas ruas em 2020 – 465 profissionais atingidos pela pandemia contra 198 assassinados em serviço ou na folga. Além disso, um a cada quatro policiais brasileiros foi afastado do seu trabalho devido a doença e seus riscos. Rio de Janeiro, Amazonas e Pará foram os Estados onde mais policiais foram vitimados pela pandemia. Uma vez que o alerta havia sido dado, são mortes que poderiam ter sido evitadas.
A morte de tantos policiais pela COVID-19 escancara o grave problema de gestão da Segurança Pública em nosso país. Boa parte das decisões são tomadas sem o recurso a estudos ou pesquisas. Ou seja, raramente decisões neste campo são tomadas tendo por base a ciência, tema tão em voga durante esta pandemia. Em geral, usa-se o bom senso de quem está na ponta da linha e acha que sabe por ter estado tantos anos realizando a função de segurança pública. Esquecem-se que é possível passar uma vida inteira trabalhando errado.
Além disso, as mortes de policiais durante a pandemia deixam claro que a prevenção e o cuidado com a vida do policial são um mero discurso que não se converte em atitudes práticas. Qual o motivo do Governo Federal não ter articulado uma política nacional de proteção aos policiais para a pandemia? Quais foram as ações concretas tomadas pelos Secretários de Segurança dos Estados para proteger os policiais além da distribuição formal de algumas máscaras e álcool gel? É preciso ainda destacar que as culturas organizacionais das polícias valorizam a virilidade e o tomar risco. Isso faz com que a prevenção com a própria saúde e o mero uso de máscaras sejam malvistos em muitos círculos de policiais. Isso se torna ainda mais nocivo quando as lideranças não assumem a sua responsabilidade de cobrar o uso de máscaras por parte dos policiais.
Embora alguns estados tenham vacinado seus policiais, no atual cenário isso não é garantia de nada. Novas cepas podem surgir diminuindo a eficácia das vacinas e o próprio valor da eficácia real dos diferentes imunizantes é ainda objeto de estudo. A prevenção da COVID-19 passa necessariamente pelo distanciamento social e pelo uso de máscaras de boa qualidade. Raramente, porém, policiais estão usando as máscaras N95. As mortes que aconteceram até o momento são a crônica de uma tragédia anunciada. E se nada for feito de efetivo para preservar a vida dos policiais, a tragédia irá ganhar cores cada vez mais dramáticas.
Rafael Alcadipani - Professor Titular da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Fonte: fontesegura.org.br/