Sem munição não há violência armada nem crime organizado. Ainda assim, são raros os esforços para compreender e combater ativamente o mercado ilegal de munições no Brasil. As análises públicas mais abrangentes são um estudo das apreensões de 2014 a 2017 no Rio de Janeiro, feito pelo Instituto Sou da Paz, e uma análise de munições coletadas em áreas de tiroteio no Rio de Janeiro, feita em 2019 pelo Intercept.
A elas se soma uma nova análise do Sou da Paz, realizada em parceria com a Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo, baseada em boletins de ocorrência de janeiro de 2018 a junho de 2022 que continham munições apreendidas ou como objeto de furto, roubo ou extravio. O resultado ilumina algumas pistas sobre esse mercado.
Foram 154 ocorrências envolvendo 5.394 unidades de munição roubadas, furtadas ou extraviadas, ou seja, desviadas do mercado legal para o ilegal[1]. Comparando o primeiro e o último semestre do período, há um aumento de 54% nos casos, que pode estar relacionado à facilitação no acesso a armas de fogo e munições promovida pelo Governo Federal anterior, especialmente quando analisada em conjunto com os dados sobre o local dos desvios.
As residências foram o local de 45% das ocorrências e origem de 56% das munições desviadas. Em seguida estão vias públicas, com 30% das ocorrências e 20% das munições. Três ocorrências em repartições públicas se destacaram pela maior média de 101 unidades levadas. O calibre .22LR, comum em tiro desportivo e caça de pequenos animais, destaca-se com 28% das munições desviadas, seguido pelo .40S&W (21%), e pelo .380 (19%).
Uma análise qualitativa das 22 maiores ocorrências (mais de 50 unidades desviadas) mostrou que 73% delas ocorreram em residências, 73% foram furtos e, entre os casos de roubo, muitos tinham indícios de informações privilegiadas sobre a presença de armas e munições.
Das munições apreendidas em situação ilegal, 14 mil ocorrências envolveram 269 mil unidades, média de 19 por ocorrência. O início de 2022 registrou 15% mais apreensões em relação a 2018.
As vias públicas foram o local de 62% dos casos, tendo um crescimento de 7% no período. Já os casos em residências chamam a atenção pelo crescimento de 29% no período, somando 25% dos casos totais.
Entre os calibres, 3 em cada 4 eram relacionados a pistolas, revólveres e carabinas, com destaque para o .380 (27%), .38 (17%) e 9mm (14%). O .22LR somou 14% e os calibres compatíveis com uso em fuzis somam 3% do total.
A marca brasileira CBC somou 88% das munições apreendidas, sendo que 11% não tinham essa informação. As marcas estrangeiras apresentam queda: de 1,4%, em 2018, para 0,6%, em 2022, podendo ser um impacto da maior oferta de munição doméstica decorrente da flexibilização do acesso e do aumento exponencial da cota de venda de munições vigentes até 2022.
Destacou-se também uma melhora na qualidade do dado. O patamar de 21% de munições sem informação de marca em 2018 caiu para 3,7% em 2022. Isso pode estar relacionado a investimentos locais na coleta de dados e na atenção ao tema. Entre eles, a promoção de cursos de análise criminal para policiais, a criação de uma delegacia especializada no combate ao tráfico de armas e o funcionamento de um Grupo de Trabalho interinstitucional sobre Controle de Armas em 2021.
Analisando qualitativamente as 26 maiores apreensões com mais de 500 unidades, 31% foram cumprimento de mandados, 15% apuração de denúncias e 12% patrulhamento. Apenas uma relatou troca de tiros, destacando o uso de informações qualificadas na promoção de ações mais seguras. Três grandes casos, entre eles o maior, com 4 mil munições, envolveram cumprimento de mandados junto a pessoas com registro legal de armas ou fiscalização em clube de tiro. Destacaram-se também dois grandes casos de crimes ambientais com indícios de caça ilegal.
Essas análises podem dar pistas para o combate ativo do mercado ilegal de munições, por exemplo, identificando: i) conexões entre mercado legal e ilegal, como roubos e furtos reiterados, indícios de omissão ou má fé; ii) locais prioritários para fiscalização em parceria com órgãos federais; iii) marcas e calibres fora do padrão, podendo indicar novas dinâmicas e fornecedores em comum; iv) priorizar denúncias e o andamento de investigações relacionadas, podendo gerar grandes apreensões e desorganizar fluxos de tráfico contínuo.
É essencial que outras secretarias combatam ativamente o mercado ilegal de munições. Isso pressupõe investir em melhorar o registro das ocorrências, nas perícias para descrição técnica completa, incluindo possíveis lotes de fabricação e dados adicionais, na integração de bases de dados e na maior especialização de equipes de investigação. A atual abertura do Fundo Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça para financiar projetos voltados a investigação, apreensão e controle de armas e munições apresenta uma oportunidade prática para uma atuação mais qualificada nesta frente.
[1] Esse conceito não pressupõe intencionalidade, engloba tanto proprietários vítimas de crimes quanto proprietários omissos ou de má-fé.
NATÁLIA POLLACHI - Gerente de projetos no Instituto Sou da Paz e mestre em relações internacionais pela Universidade de São Paulo.
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