Os olhos do mundo estão novamente voltados para o conturbado cenário do Oriente Médio. Desta vez, o brutal ataque terrorista do Hamas deu causa a uma contraofensiva ainda mais violenta de Israel e a uma dantesca tragédia humanitária. Como sabido, o conflito não começou naquela manhã de 7 de outubro e é somente mais um capítulo de décadas, senão séculos, de atritos na região.
Esses atritos foram potencializados, dentre outros fatores, pela política israelense sobre porte de armas de fogo que, desde 2018, proporcionou o aumento da quantidade de armas na região, principalmente após a formação da atual coalizão, em 2022, que governa o país com forte participação da extrema-direita. Com o discurso de que a posse e o porte por colonos deixariam os assentamentos mais seguros, o governo incentivou o aumento do número de armas em circulação.
A cultura de defesa e militarização de Israel faz com que não seja difícil encontrar, mesmo nos maiores centros urbanos, cidadãos portando ostensivamente pistolas e fuzis. Ainda assim, o Ministério de Segurança Nacional determinou que fosse quintuplicada a emissão de licenças para armas de fogo com a flexibilização dos requisitos legais, mesmo sob críticas do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
As autorizações para porte de armas de fogo foram direcionadas a colonos assentados na região da Cisjordânia, onde convivem judeus e palestinos e a tensão é constante. Em alguns desses assentamentos, cerca de um terço da população judia possui porte de arma, sem considerar os integrantes de forças militares e de segurança. Ao mesmo tempo, as licenças para cidadãos árabes seguiram dificultadas, evidenciando o viés segregatório.
Sob o argumento da autodefesa da população judia, a quantidade de armas em circulação aumentou exponencialmente e, com isso, o que se observou foi o aumento dos índices de violência de judeus contra palestinos com elementos que apontam não para a defesa, mas para ataques a patrimônio e pessoas com resultados letais.
Segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, em 2022 a quantidade de incidentes violentos causados por colonos judeus atingiu o recorde de 856 eventos. Antes do aumento dos últimos anos, o pico havia sido de 433 incidentes em 2011, no contexto dos reflexos da Primavera Árabe. Essa violência teria implicado no deslocamento forçado de grande quantidade de palestinos na Cisjordânia, cerca de 12% da população de 28 comunidades, principalmente das regiões de Ramala, Nablus e Hebron, além de contribuir para o surgimento de novos grupos extremistas nesses locais, como o “Cova dos Leões”, criado em 2022.
Em reação, ainda, observou-se o aumento do comércio ilícito de armas destinadas às comunidades árabes, ora contrabandeadas pelas fronteiras terrestres, ora adquiridas no mercado clandestino interno fomentado pelo desvio de armas lícitas.
Ao invés de assegurar a autodefesa e a dissuasão, as armas na Cisjordânia têm sido instrumento de ataques cada vez mais letais entre civis, gerando reações violentas que retroalimentam o ciclo de hostilidades e que culminam em episódios de terror como os presenciados desde o último dia 7 de outubro, com milhares de inocentes mortos em ambos os lados.
O crescimento da violência armada na Cisjordânia não foi a principal causa do ataque terrorista, mas contribuiu para a escalada das tensões e para o fortalecimento da narrativa de grupos radicais palestinos. Analistas, inclusive, creditam parte da letalidade da ofensiva do Hamas à transferência da maior parte do efetivo militar israelense para a Cisjordânia com o fim de atuar nos conflitos entre judeus e palestinos que se intensificaram naquela área.
Organizações israelenses avaliam que a violência dos colonos, exacerbada também pela grande quantidade de armas de fogo, são uma ameaça à democracia e à segurança de Israel e somente causarão mais tristeza e hostilidades para as futuras gerações, já que a escalada de violência tende a se manter pelo menos no curto e médio prazos, principalmente enquanto seguir a política de instalação de assentamentos em território palestino.
O fato é que, após os ataques, o atual governo intensificou a campanha de distribuição gratuita de armas de fogo e os resultados, novamente, demonstram que a medida joga mais combustível na fogueira de ódio, intolerância e violência. Desde os ataques terroristas do Hamas nas imediações da Faixa de Gaza, mais de 110 palestinos foram mortos, dentre os quais 33 crianças, e mais de 2.000 foram feridos por militares ou por colonos israelenses a quilômetros dali, na Cisjordânia.
Ao contrário das organizações militares que, em tese, possuem mecanismos de controle baseados em hierarquia e disciplina, os colonos constituem, na prática, milícias que agem movidas por interesses e sentimentos próprios e propensas à violência descontrolada.
Ainda assim, o discurso armamentista travestido do direito de autodefesa tem sido repetido em diversos países por algumas parcelas específicas do espectro político, majorando o risco de replicação de novas tragédias. Há muitas pesquisas que apontam que uma maior quantidade de armas de fogo em circulação, ao invés de proporcionar segurança, transforma as residências em potenciais alvos para obtenção de armas, o que pode ter justamente efeito contrário ao propagado incialmente
Em uma equação na qual o ressentimento é um dos principais fatores, distribuir armas à população tem como resultado inevitável o aumento da violência armada e o enfraquecimento da democracia. Ao incentivar que a população se arme e promova justiçamento, o próprio Estado deixa de cumprir sua obrigação enquanto detentor do monopólio do uso da força e de promotor da justiça.
ROBERTO UCHÔA - Policial federal, doutorando em Democracia do Século XXI na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra/Portugal e Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
MARCOS PIMENTEL - Delegado de Polícia Federal, Mestre em Alta Gestão em Segurança Pública pela Universidad Carlos III de Madrid e adido da Polícia Federal no Oriente Médio.
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