Em 2023, quando se comemora o 35º aniversário da vigência da Constituição Democrática, houve uma importante mudança no acesso de mulheres aos Quadros da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), que reverberará para as demais instituições policiais militares. Entretanto, a trajetória histórica para a mudança é resultante de lutas jurídicas, políticas e culturais. Além do processo de mudança do acesso, há a possibilidade de construção de um modelo policial nacional que assegure a permanência das mulheres policiais que exerçam a atividade-fim.
Como demonstrou Cristiane Lima (2020), apenas em 1955 as primeiras mulheres ingressaram na carreira policial militar, no estado de São Paulo, no denominado Corpo Especial de Polícia Feminina da Guarda Civil de São Paulo. Segundo a autora, “depois, outras polícias seguiram o exemplo: no Paraná em 1977, no Pará em 1982, em Rondônia em 1983, no Acre em 1985, no Rio Grande do Sul em 1986, na Bahia em 1989 e no Rio Grande do Norte em 1990. É válido ressaltar que, neste início, ao ingressarem elas iam para quadros definidos e limitados e percorriam uma carreira paralela e separada da carreira dos homens. Além dos quadros, as funções também eram as que ‘encaixavam’ no padrão feminino, tais como ‘proteção de menores e mulheres’, policiamento de praças, policiamento escolar, bem como posteriormente o de trânsito” (LIMA, 2020).
Entretanto, o acesso ainda é restrito. A partir da provocação das candidatas do concurso para Soldado da PMDF, a Procuradoria Geral da República (PGR) contestou a limitação no número de vagas por entender a inconstitucionalidade da limitação de vagas por gênero. Em outubro a PGR ajuizou outras 14 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) contestando a limitação de vagas para as mulheres em instituições policiais militares ou de segurança pública.
Entre elas, há limitações de vagas em 10% (ADI 7479, referente à legislação do estado de Tocantins; ADI 7480, de Sergipe; ADI 7481, de Santa Catarina), em 15% (ADI 7482, de Roraima e ADI 7491, do Ceará), e as normas que permitem fixar de acordo com a necessidade governamental (ADI 7483, do Rio de Janeiro e ADI 7486, do Pará). Cabe ressaltar que várias Polícias Militares não limitam o acesso como, por exemplo, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul.
Quanto ao Distrito Federal, após a suspensão do concurso por determinação liminar do STF, o governo do Distrito Federal solicitou a continuidade do concurso sem limitação de gênero. O concurso continuará sem limitação de vagas e as candidatas aprovadas concorrerão ao total de vagas. As outras ADI’s ainda serão objeto de análise do STF.
Todavia, a partir da luta por direito constitucional, abre-se uma janela de oportunidade para provocar o debate também sobre o processo de seleção, sobre o paradigma policial brasileiro e os resultados desta seleção para a sociedade e para os profissionais de segurança: inicialmente se a profissão é a mesma, por que há diferentes percentuais de limites de acesso às mulheres e o que há de diferente nestas instituições? O que é ser policial? Qual o perfil que está selecionando e qual o perfil profissional desejado? Que atividades exercem após a seleção?
O debate sobre o perfil policial passa pelo debate dos processos de formação. A profissão Policial Militar reconhecida nacionalmente tem característica de formação diferenciada, dependendo da instituição policial militar. Tanto para requisitos mínimos de formação acadêmica para o ingresso quanto o tempo para formação policial militar. Algumas instituições policiais reconhecem como escolaridade mínima o Ensino Médio para ingresso, todavia, para algumas academias policiais militares a formação profissional geralmente é em torno de um ano, e para outras academias a formação habilita como Tecnólogo em Segurança Pública, com o tempo de formação entre dois e três semestres.
Em outras instituições a escolaridade mínima é o Curso Superior e a formação profissional é entre um a dois semestres. Neste sentido, qual é o conhecimento mínimo para exercer a profissão policial militar?
O debate sobre o perfil possibilita determinar se há características físicas para o exercício da profissão. Neste sentido, qual é o mínimo de esforço físico e de movimentos corporais necessários para exercer a profissão? Por quê? Como é medido? Quais parâmetros da atividade profissional são utilizados para os atributos físicos exigidos? Se há o mínimo a ser executado em determinada atividade física, como essa atividade está relacionada com a atividade policial militar e quais os parâmetros mínimos?
Para que tenhamos inicialmente essas respostas, necessitaríamos de protocolos da atividade policial. Assim, compreender-se-ia qual a quantidade mínima de policiais para o policiamento em viatura e qual a atribuição de cada policial e, se não há a quantidade mínima, o que deveria ser feito; da mesma forma, quais os Equipamentos de Proteção Individual e Coletivo mínimos, e quais os armamentos mínimos para atender as ocorrências cotidianas que possibilitem a segurança para policiais e para as pessoas atendidas.
Partindo pela análise da ausência do debate, percebe-se que a não-construção do perfil policial está diretamente relacionada à manutenção das relações tradicionais das instituições. Neste sentido, as tradições rivalizam com a possibilidade da racionalidade de objetivo, de recursos e das avaliações de ações policiais; também está relacionado com a improvisação que submetem os policiais ao fundamentarem suas experiências dos mais antigos e com as experiências de rua.
E, por último, essas relações tradicionais discriminam segmentos da sociedade, tanto dentro quanto fora dos quartéis, ao restringirem direitos de acesso e permanência, ao reificarem estereótipos misóginos ao atribuírem atividades com menor capital simbólico a determinados papeis sociais, pois, ao elaborar o perfil policial, construirá as atribuições do cargo e a fundamentação científica para a seleção de candidatos e candidatas.
A Constituição foi uma conquista da sociedade, é a normatização de algumas conquistas que ainda não foram consolidadas. As instituições de segurança são um instrumento importante na mediação dos direitos constitucionais nas relações face a face, na prática cotidiana. Todavia, ainda necessita que as mudanças aconteçam dentro dos quarteis, das delegacias, nos tribunais e nos muros “ressocializantes” para garantir os direitos daqueles que garantem direitos, do acesso à permanência na instituição.
A conquista das mulheres em 2023 pela igualdade de acesso ao cargo de Policial Militar sem distinção de gênero simboliza perfeitamente a Constituição Democrática Brasileira de 1988: é resultante histórica de conflitos sócio-políticos e culturais e dos conflitos sociais para mudar as instituições, mas falta muito do que foi idealizado e há necessidade de institucionalização de outras relações para manter o que foi idealizado.
GILVAN GOMES DA SILVA - Formado em Antropologia e Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.