Na carcaça do carro, um bilhete: “PCE É BALA”. Ao lado do veículo incendiado, os corpos de um casal com marcas de tiros. Segundo os moradores, a mensagem foi deixada pelo Primeiro Comando de Eunápolis (PCE). O crime aconteceu no último dia 15, em Porto Seguro, no extremo sul do estado, e não há dúvida de que o principal motivo desta violência é a expansão das facções pelo território baiano. Deste modo, a recém-chegada do Rio de Janeiro, Terceiro Comando Puro (TCP), além de DPM, Raio A, Raio B e o BDN (Bonde do Neguinho) são alguns exemplos de organizações criminosas que espalham o terror no interior da Bahia.
“Recentemente começaram a circular aqui em Jacobina, vídeos e áudios de pessoas ligadas a facções criminosas e que estavam chegando para invadir a cidade, exigindo respeito dos empresários, dos moradores, das comunidades. Nas imagens, eles mostravam armas pesadas e diziam que ia morrer muita gente. Entre julho e setembro aconteceram algumas mortes, que deixaram a população apavorada”, relata uma moradora, que se mudou para o interior há dois anos, com medo da violência em Salvador.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho deste ano, a Bahia aparece no topo do ranking nacional da violência. Com um total de 6.659 mortes intencionais em 2022, o estado é o segundo no ranking do mais violento do país, atrás apenas do Amapá. As ações de enfrentamento da polícia concentradas na capital ao longo dos anos abriram espaço para a chegada de organizações nacionais e também possibilitaram o surgimento de novos grupos locais, conforme explica Wagner Moreira, do Ideas Assessoria Popular e do Fórum Popular de Segurança Pública da Bahia.
“Esta não é uma dinâmica exclusiva da Bahia. É uma dinâmica das regiões Norte e Nordeste do país. A estratégia de enfrentamento ostensivo ignorando a demanda pelas drogas fez o mercado se reorganizar. A disputa por hegemonia nestes novos territórios contribui significativamente para o quadro de violência atual, que não se acomodará no curto prazo”, declara Moreira.
O especialista em segurança pública, professor Luiz Lourenço, do Laboratório de Estudos Sobre Crime e Sociedade (Lassos) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), acrescenta que o cenário se deu também em decorrência do “intercâmbio do crime” no sistema carcerário.
“Essa consolidação vem acontecendo de maneira contínua há pelo menos oito anos. Antes do RDD (Regime Disciplinar Diferenciado, regime com maior grau de isolamento e restrições de contato com o mundo exterior), tivemos a presença de lideranças importantes de São Paulo que ficaram custodiadas no interior da Bahia”, explica.
Porto Seguro
Os corpos de Carlos André dos Santos Alves, de 29 anos, e Ana Júlia Freire dos Santos, de 22, foram encontrados no último dia 15, na Aldeia Xandó, localizada na Estrada de Caraíva – o local é um dos acessos à região turística de Porto Seguro –, mas as vítimas foram atacadas após a região da Aldeia de Barra Velha, na localidade do Xandó. Testemunhas relataram que André teria uma desavença com o PCE, que aproveitou para fazer uma tocaia, pois o rapaz estava na região com Ana para comemorar o aniversário dela.
Segundo a Polícia Civil, Carlos André era investigado por roubo qualificado e homicídio e era suspeito de integrar um grupo criminoso. “Um bilhete referindo-se a uma retaliação cometida por supostos rivais foi encontrado junto ao corpo do homem. Depoimentos e diligências investigativas estão sendo realizadas. Laudos periciais vão auxiliar na apuração do crime", detalha a PC.
Além do PCE, disputam o controle do tráfico em Porto Seguro e cidades vizinhas as facções MPA (Mercado do Povo Atitude) e CP (Campinho). A presença de organizações criminosas no extremo sul do estado tem gerado medo para moradores, principalmente a comunidades indígenas que vivem na região da Aldeia de Barra Velha, localizada às margens da Estrada de Caraíva, que liga a zona turística do litoral a municípios como Porto Seguro, Itabela e Eunápolis. Eles, que vivem há anos em um conflito por terras com fazendeiros, agora precisam lidar com as invasões e ameaças do tráfico.
O forte crescimento econômico e populacional conjugado entre Porto Seguro e Eunápolis, que figuram entre os 17 municípios baianos com mais de 100 mil habitantes, associado ao fluxo turístico que mantém aquecido o mercado de drogas, além da extensa área de reserva de Mata Atlântica, e o alto número de territórios indígenas não titulados aumentam a complexidade da região, segundo o Ideas, que acompanha a situação.
“Lideranças indígenas seguem sobre forte e constante ameaça das organizações faccionadas. A distância de algumas aldeias como Xandó e Barra Velha, a forte pressão da especulação imobiliária, extração ilegal de madeira, inclusive pau brasil, retroalimentam mercados não regulados que tornam o território Pataxó disputadíssimo pelas facções, tanto pela demanda do mercado de drogas, quanto pela possibilidade de lavar dinheiro”, declara.
O jornal procurou a Polícia Civil, para saber se tem conhecimento da invasão de terras e ameaça do tráfico aos indígenas, através de e-mails para o endereço policiacivilascom@gmail.com, nos dias 18 (12h34) e 19 (09h30) deste mês, mas até o momento não teve resposta.
TCP
Em abril deste ano, a rival do Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando Puro (TCP), chegou à Bahia pele região do Recôncavo e fez aliança com o Bonde do Maluco (BDM). Os moradores do bairro do Bonfim, em Santo Amaro da Purificação, acordaram com as paredes de suas casas, muros e estabelecimentos comerciais pichados com a sigla da organização criminosa baiana sobre as iniciais da facção carioca, a segunda maior do Rio de Janeiro.
TCP chega em Santo Amaro e faz parceira com o BDM
“Ninguém mais dorme tranquilo. Vez e outra aparece um corpo, fruto da guerra, porque aqui também tem o Comando Vermelho, mas em menor número”, diz uma moradora.
A aproximação entre o BDM e o TCP se deu através do traficante santamarense conhecido como Cabeça, quando há alguns anos cumpria pena em Bangu 1, no Rio. De volta a Santo Amaro, Cabeça gerencia o tráfico nos bairros de Nova Santo Amaro e Sacramento, uma das principais áreas de atuação do BDM. “ A gente nunca imaginou que Santo Amaro chegaria a esse ponto. Antigamente, o que havia aqui eram esses pequenos furtos, não havia tráfico. Hoje, tem bocas-de-fumo e meninos armados até os dentes”, emenda a moradora.
Segundo policiais que atuam na cidade, a parceria entre o TCP e o BDM se deu, principalmente, porque ambas têm o mesmo inimigo: o CV. Depois do Recôncavo, o TCP chegou no norte da Bahia, no final do mês de agosto, em Jacobina. Os moradores acordaram apavorados com os vídeos que os próprios criminosos postaram nas redes sociais. Os faccionados decretaram que as localidades de Jacobina III e IV, Vila Feliz, Bananeira, Grotinha e Caixa d’Água agora pertencem a eles.
No dia 28 de agosto, oito homens com pistolas e armas longas invadiram a comunidade da Grotinha e executaram Gabriel Silva de Oliveira, 21. A vítima responde por tráfico de drogas. “Foi um intenso tiroteio entre eles na madrugada. O corpo foi encontrado quando amanheceu. No mesmo dia, horas depois, à noite, uma mulher foi morta nas mesmas circunstâncias no mesmo local”, relata uma moradora. No dia 02 de setembro, Lucibarbara Amorim Gomes, 23, foi encontrada sem vida, numa estrada vicinal, na localidade de Escôncio, zona rual da cidade. A vítima apresentava vários tiros e também era residia na Grotinha.
Em Itabuna, região sul do estado, a DMP, que controla os bairros de Daniel Gomes, Maria Pinheiro e Pedro Jerônimo, vem disputando o domínio na região com os rivais do Raio A e Raio B. Na região sudoeste, o BDN (Bonde do Neguinho) atua na cidade de Vitória da Conquista. Fundada em 2019, hoje detém o comércio de entorpecentes da cidade e adjacências.
Nova estratégia
Seis das 10 cidades mais violentas do país estão na Bahia, segundo os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A informação se baseia na taxa de mortes violentes intencionais e considera apenas as cidades com mais de 100 mil habitantes. No topo do ranking nacional está Jequié, no sudoeste da Bahia. A cidade tem taxa de 88,8.
foto: jequie-aparece- (Jequié aparece como cidade mais violenta do país. Crédito: Ivo Leandro/acervo Pessoal)
Em segundo lugar, aparece Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo, com 88,3. Em seguida, Simões Filho, com 87,4, e Camaçari, 82,1. As duas cidades fazem parte da Região Metropolitana de Salvador. Em nono lugar está Feira de Santana, com 68,5, e Juazeiro aparece em décimo lugar, com 68,3. Em seguida, em 11º está Teixeira de Freitas, com 66,8 e Salvador aparece em 12º, com taxa de 66.
“A estratégia do combate ostensivo, como estratégia hegemônica, apresentou como consequência novas dinâmicas de violência que precisam ser respondidas com novos métodos, baseados em trabalhos de inteligência, evidências e dados, e sobretudo com uma séria discussão sobre a regulação de mercados não regulados, dentre eles o de drogas”, pontua Wagner Moreira, do Ideas.
O professor Luiz Lourenço, do Lassos (Ufba), concorda que as medidas atuais não resolveram o problema. “Acredito que seja necessário fazer o que não foi feito. Investir em políticas que visem diminuir efetivamente a vulnerabilidade social, sobretudo provendo renda e emprego para o jovem negro da periferia”, declara.
Posicionamentos
O jornal buscou um posicionamento da Polícia Militar através do e-mail dcs.imprensa@pm.ba.gov.br, nos dias 17 (14h16), 18 (10h51) e 19 deste mês (9h30), mas não obteve resposta. A reportagem questionou a atuação da Polícia Civil, pelo e-mail policiacivilascom@gmail.com, nos dias 17 (14h18), 18 (10h47) e 19 deste mês (9h30). Até a publicação, não houve posicionamento. Na sequência, foi cobrada a conduta da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP) diante dos fatos, através do e-mail ascomsspba@gmail.com, nos dias 17 (14h13), 18 (10h53) e 19 (9h29), mas também não houve resposta até esta publicação.