O início do Século XXI foi anunciado, no dia 11 de setembro de 2001, por um atentado terrorista de enormes proporções. Das várias aeronaves sequestradas por terroristas durante o voo, duas foram dirigidas para os prédios das Torres Gêmeas, em Nova York, matando milhares de pessoas, trabalhadores comuns, pais e mães de família, turistas desavisados.
Os atentados organizados sob a liderança de Osama Bin Laden, líder da organização terrorista Al-Qaeda, foram comemorados, aqui ou ali, por manifestações nem tão envergonhadas, que viam naqueles atos uma fissura na hegemonia do império americano. Não importa que por trás dos atentados estivesse não apenas a Al-Qaeda, mas também o Talibã, cujo regime político no Afeganistão submetia a uma teocracia autoritária toda a sociedade afegã, e muito especialmente as mulheres.
Fato é que desde então o mundo não seria mais o mesmo. Restrições e controles sobre viagens aéreas, receio de imigrantes e de pessoas de origem árabe, legitimação do aumento quantitativo e qualitativo dos mecanismos de controle, inclusive sobre o que antes eram direitos reconhecidos de ir e vir e à intimidade, invasão de países em nome do combate ao terror.
No âmbito dos mecanismos de segurança pública e justiça criminal, cada país definiu seus inimigos internos prioritários, desde grupos guerrilheiros, facções de traficantes ou movimentos sociais em luta por direitos, e foram deflagrados processos de desdemocratização, com a adesão de amplos setores da população de vários países, inclusive com histórico democrático, a líderes populistas, dispostos a ampliar o poder das forças de segurança e flexibilizar o controle sobre o uso da força diante dos supostos inimigos a serem combatidos.
A polarização política se impôs à lógica da política voltada para a construção de acordos e consensos, com o fortalecimento de grupos, à direita ou à esquerda, dispostos a suprimir direitos e garantias em nome de seus objetivos de manutenção do poder e controle social. Em comum, a mesma ética que rege as ações do terrorismo: os fins justificam os meios.
Nestas pouco mais de duas décadas, o terror já se manifestou na França e na Espanha, no Marrocos e no Quênia, na Ásia e nas Américas. Em alguns casos, grupos de terroristas organizados e financiados, com planejamento de longo prazo e ações espetaculares. Em outros, lobos solitários, dispostos a tudo em nome de um objetivo: matar pessoas para difundir uma causa, manifestar um ressentimento ou derrotar um adversário político.
A ação de um terrorista pode ter por motivação a adesão fundamentalista a uma crença, o ressentimento por uma percepção de injustiça, a luta desesperada contra alguma forma de opressão insuportável. Para os que orientam e comandam os atos a distância, o objetivo é dar visibilidade a uma causa ou alterar o curso de processos políticos. Como meio, tratar a vida humana de pessoas comuns como algo descartável, um objeto a ser destruído, instrumento a ser utilizado em nome de objetivos muitas vezes inconfessos, mas capazes de mobilizar corações e mentes de adeptos fanatizados.
No dia 7 de outubro de 2023, o terror irrompeu em Israel, na região próxima à Faixa de Gaza. Quase 3 mil pessoas foram barbaramente assassinadas, com violência brutal e deliberada para causar o maior dano possível. Em ação metodicamente planejada e não prevista pela inteligência israelense, o Hamas assumiu a responsabilidade pelos atos, e levou consigo mais de 200 reféns, até agora mantidos em cativeiro, causando pavor e desespero entre seus familiares e amigos.
Desde o ocorrido, as redes sociais e a mídia debatem o contexto e as causas profundas do terror. Para além da oposição até então legítima e democrática de boa parte dos próprios israelenses ao governo liderado por Benjamin Netanyahu, cada vez mais alinhado à extrema direita na tentativa de estabelecer um poder autocrático, limitando a competência do Poder Judiciário, e, no front externo, sabotar qualquer possibilidade de uma solução com dois estados, o judeu e o palestino, surgiram questionamentos à própria existência do Estado de Israel. Manifestações de antissemitismo surgem por toda parte, e o legítimo questionamento da resposta do Estado de Israel ao ataque do Hamas, com a invasão e o bombardeio na Faixa de Gaza, e a morte de milhares de homens, mulheres e crianças palestinos, estabelece a polaridade pretendida pelo terror.
Os dilemas colocados pela necessidade de resposta ao terrorismo, nas suas diversas manifestações, se apresentam tanto para os Estados Nacionais contemporâneos, quanto no âmbito das políticas internas de segurança pública. A questão é: quando ocorrem ameaças terroristas a escolas, com a matança de crianças indefesas, ou quando grupos ligados aos mercados ilegais se utilizam da espetacularização da violência, matando, esquartejando, decapitando e expondo seus troféus no Youtube; quando um grupo armado atenta contra a integridade física e a vida de pessoas comuns, com armamento pesado e táticas de guerrilha, ou quando estratégias de luta política extrapolam a liberdade de expressão e atentam contra a vida e a integridade física ou psíquica de seus adversários, qual é o limite da ação das forças de segurança? E qual o papel da justiça criminal, desde as cortes locais até o Tribunal Penal Internacional, para a responsabilização dos terroristas e das autoridades públicas por suas ações contra a lei?
Possivelmente da resposta a estas perguntas irá depender o desfecho de um Século que pode terminar com a falência do sistema multilateral construído no pós-guerra para o arbitramento dos conflitos e a gestão dos bens comuns à toda humanidade e, no mesmo vórtice, da própria ideia de administração democrática e dialógica dos conflitos internos e transnacionais.
No Século XX, dois dos maiores exemplos históricos de sucesso na luta contra a colonização de exploração e/ou de ocupação se tornaram dois símbolos da luta pacifista, da política como caminho da mudança: Mahatma Gandhi e Nelson Mandela. Em comum, a superioridade moral da força da palavra e das ações contra a força bruta e a violência.
Os tempos são outros, a revolução informacional tornou acessível um amplo conhecimento sobre o poder de destruição, as redes da criminalidade globalizada estabeleceram fluxos de recursos e armas para todo tipo de finalidades ilícitas, e o ressentimento e a miséria produzidos pela expansão da economia capitalista neoliberal em escala global criaram as condições propícias ao surgimento e disseminação de todo tipo de fundamentalismos. Os interesses particularistas dos Estados Nacionais e suas lideranças autocráticas tem levado à rendição à lógica do terror, tornando indistinta a ação das polícias ou de grupos milicianos. Tudo propício à eclosão de espirais de violência cada vez menos controláveis, e à legitimação do crime e do terror como respostas não só possíveis, mas necessárias, contra o “sistema”.
A resistência ao terror, portanto, não prescinde do uso da força, mas a estreita possibilidade de construir uma outra lógica para a gestão dos conflitos no contexto contemporâneo impõe a necessidade de reconstruir a legitimidade democrática, cujos fins condicionam e dependem dos meios escolhidos. É a tarefa de uma geração que tem nas mãos o destino do planeta. Estaremos à altura?
RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO - Sociólogo, Coordenador do Observatório de Segurança Pública da Escola de Direito da PUCRS e Associado Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Edição nº 205 | fontesegura.forumseguranca.org.br/