A intersecção entre masculinidades frágeis e marginalizadas e o uso de armas de fogo é um tema complexo e controverso que merece uma análise crítica. Em muitas sociedades, a associação entre armas de fogo e masculinidades é intrínseca. Este texto pretende explorar a relação entre estas masculinidades e o uso de armas, deixando clara a existência do mito das armas como proteção, nomeadamente em relação à violência doméstica armada.
As masculinidades fragilizadas e marginalizadas referem-se a construções sociais que pressionam homens a aderir a normas e expectativas rígidas da masculinidade tradicional, tais como serem agressivos, sem emoções e dominantes. Essas expectativas sociais podem criar um autoconceito frágil nos homens, levando-os a procurar validação através de comportamentos que estejam em conformidade com essas normas. Um desses comportamentos é o uso de armas de fogo.
As armas de fogo têm sido simbolicamente associadas ao poder, à força e ao controle. Dos heróis de ação de Hollywood à retórica política, a imagem de homens musculosos e armados é perpetuada. Esse imaginário reforça a noção de que possuir e utilizar armas de fogo é uma forma de homens afirmarem a sua masculinidade, contribuindo assim para masculinidades frágeis.
Apesar do discurso de que armas de fogo “empoderam” as mulheres e tornam suas vidas “mais seguras”, parece que elas não concordam com isso, já que, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação com base no recadastramento de armas, 97% das pessoas que adquiriram armas de 2019 a 2022 eram do sexo masculino. Percentual parecido com os apontados por Santos (2021) de 99,1% e Keinert (2006) 95%.
Aliás, um dos mitos mais difundidos na cultura das armas é justamente a crença de que possuir uma arma de fogo proporciona uma sensação de segurança. A ideia do “cidadão de bem armado” implica que ter uma arma garante proteção pessoal. No entanto, a realidade é mais complexa. Pesquisas e estatísticas indicam que a presença de uma arma de fogo em um lar pode aumentar o risco de violência doméstica e acidentes:
Maior risco de homicídio: Indivíduos que têm acesso a armas de fogo geralmente têm quase três vezes mais chances de serem vítimas de homicídio do que aqueles sem acesso (Studdert et al, 2022).
Agravamento da violência doméstica: A presença de armas de fogo torna as situações de violência doméstica consideravelmente mais perigosas, com grande parte das mulheres assassinadas no Brasil sendo vítimas de armas de fogo, frequentemente por seus parceiros ou ex-parceiros. Isso demonstra que as armas de fogo em casa muitas vezes transformam conflitos familiares em confrontos fatais[1].
Disparos acidentais: A noção de que armas oferecem proteção é questionada pela frequência de disparos acidentais em lares com armas de fogo. Ferimentos não intencionais causados por armas de fogo resultam em milhares de mortes e ferimentos a cada ano, muitos dos quais envolvem crianças. Nos Estados Unidos, país com grande quantidade de armas em circulação, ferimentos por armas de fogo já são a principal causa de mortes de crianças e adolescentes[2].
Risco de suicídio: As armas de fogo também são um dos principais meios de suicídio, com os homens tendo maior probabilidade de usá-las em tentativas de suicídio. A presença de uma arma em casa pode agravar o risco de tentativas impulsivas de suicídio, evidenciando que o mito das armas como garantia de proteção pode ter consequências devastadoras (Wiebe, 2003).
É essencial reconhecer que o mito das armas como proteção e a associação entre armas de fogo e masculinidade estão inter-relacionados. Para os homens que buscam um reforço da sua masculinidade, a presença de uma arma de fogo pode ser um símbolo de força, controle e domínio, reforçando o seu autoconceito. A demonstração de força e poder através da arma de fogo se torna uma realidade.
No entanto, esse fascínio por uma masculinidade dominante e pelo poder tem um custo significativo. Não são poucas as ocorrências de conflitos entre vizinhos ou no trânsito que, pela simples presença de uma arma de fogo, acabam em letalidade. Disparos de armas de fogo em vias públicas têm sido noticiados com uma frequência que parece ser maior que antes e crescem os casos de ataques a escolas perpetrados por jovens que tinham acesso a armas de fogo em suas residências e as utilizaram para alvejar alunos e professores.
Desmascarar o mito das armas como proteção e abordar masculinidades que pretendem ser dominantes sendo, contudo, frágeis, envolve educação sobre os riscos das armas, promoção de uma masculinidade baseada em empatia e inteligência emocional e implementação de políticas de controle de armas. A interação entre masculinidades e armas perpetua esse mito perigoso. Desafiar essa narrativa exige a promoção de masculinidades solidárias, conscientização sobre os riscos das armas de fogo e medidas responsáveis de controle de armas para garantir comunidades mais seguras. A abordagem de todas essas questões é fundamental para desmantelar o mito das armas como proteção e mitigar seus danos.
Keinert, R. C. Valores e Significados Atribuídos às Armas de Fogo por Cidadãos Proprietários e por Detentores do Porte de Armas. In: SENASP. Coleção: Concurso nacional de pesquisas aplicadas em segurança pública e justiça criminal. Brasília, 2006.
Santos, R. U. de O. Armas para Quem? A busca por armas de fogo. 1. ed. São Paulo: Editora Dialética, 2021. 144 p.
Studdert, David M., et al. “Homicide deaths among adult cohabitants of handgun owners in California, 2004 to 2016: a cohort study.” Annals of internal medicine 175.6 (2022): 804-811.
Wiebe, Douglas J. “Homicide and suicide risks associated with firearms in the home: a national case-control study.” Annals of emergency medicine 41.6 (2003): 771-782.
[1] https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2022/11/17/arma-de-fogo-e-instrumento-mais-utilizado-em-feminicidios-no-brasil.ghtml
[2] https://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2023/10/05/armas-de-fogo-criancas-eua.ghtml
ROBERTO UCHÔA - Policial Federal, doutorando em Democracia do Século XXI na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
TATIANA MOURA - Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Cocoordenadora do Observatório Masculinidades.pt /CES e Doutora em Paz, Conflitos e Democracia pela Universidade Jaume I, Espanha.
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